terça-feira, outubro 30, 2007

À espera do sinal

Nestor conhecera a rapariga há poucos dias, poder-se-ia dizer que realmente nem a conhecia, trocavam olhares, recados e atreviam-se uma ou outra vez a trocar palavras, eram no entanto sentidas essas parcas palavras, sentidas e intensas, como se conhecessem à tempo incalculável, como se as palavras fossem o utensílio usado numa espécie de brincadeira inocente mas com objectivos claros e ambiciosos.

Sempre revelara enorme paixão pelo cinema, sempre levara a sua preciosa câmera de filmar para a rua nos dias de Inverno em que a luz estranha mas mágica parecia marcar todos os objectos com um toque especial, revelando beleza na pedra e no objecto mais banal. Por este facto lembrar-se-ia sempre da primeira vez em que a viu, num dia igual a muitos outros de Inverno, perseguia perspectivas em todos os cantos de prédios e ruas, focando sempre os objectos mais escondidos, aqueles que necessitavam obrigatóriamente de segundo olhar para serem notados. Filmou assim inúmeras cenas centradas na luz natural e movimentada desses objectos, até se cruzar com uma sandália fora do comum, branca e delicada, envolvendo pé estreito e elegante. Dirigiu-se ao seu encontro e só quando reparou que a pessoa que as calçava estava parada à sua frente, levantou a objectiva e centrou-a na sua cara. Assim, ao ser supreendido pela beleza daquele rosto natural que observava através da camera, retirou de imediato o olho da objectiva e embasbacado, olhou e admirou-a nunca se atrevendo a expressar fala sentida e tradutora do que sentia. Foi ela que interrompeu o momento:

-Sim? Posso fazer alguma coisa por si?
Não respondeu, não foi capaz, fixava-se agora nos olhos de cor invulgar.

-Senhor? Está bem?
Voltou a não responder, reparava nos lábios, perfeitos e de uma cor que jurava nunca se ter atrevido a qualificar.

A rapariga achou logo ali piada ao rapaz, estranho mas embasbacado a olhá-la, como se tivesse encontrado na sua pessoa motivo de estudo e admiração. Deixou-se estar durante breves momentos (que foram para ele apenas instantes), brincou com ele, balançou-se de um lado para o outro, sorriu-lhe de vários ângulos, sempre honesta, sempre cheia de graça e cada vez mais razão de vida para o rapaz. Por fim achou que já se tinha “dado” o suficiente e retomou o seu caminho, sussurrando-lhe um adeus melodioso e hipnotizante.
Ele apercebeu-se do fim e não o aceitou, reagindo rapidamente como se fosse louco:

- Espera!! Espera!!
- Sim?? – Respondeu ela.
- ham...ah... poderia admirar o teu nome? Se mo dissesses?
- Poderás! Margarida... Albuquerque.
- Claro...Margarida faz sentido, poderia ter sonhado nome como esse.

Margarida voltou a achar-lhe piada, pelo menos entretia-se com ele, era educado, não demasiado, mas educado de forma agradável, com palavras fora do comum, com reacções de apaixonado, isso deliciava-a.

Demoraram-se dias não contados, até que um dos dois lançasse a iniciativa.
Foi Margarida que numa destas conversas de passagem finalmente o fez:
- Poderias-me oferecer um café...Se fizeres questão... – Emitindo o pedido em forma de ordem.

Ele obedeceu de imediato, procurando escolher o local que estivesse mais de acordo com ela. Não o encontrou, e tendo noção que não teria muito tempo, decidiu-se por um café recolhido e agradavelmente situado no meio de um jardim verde e em plena germinação .
A conversa fluiu, primeiro falava ela, sempre em tons de majestade, de forma consonante com os seus gestos e com a sua beleza. Ele ouviu-a, sempre em pleno estado de adoração, cada vez mais apaixonado, cada vez mais incapaz de se controlar na partilha de conhecimentos, poemas, livros, filmes.
Passaram assim algum tempo, ele deu-se como rendido a ela e pareceu Margarida ter-se rendido também ao seu adorador, dando-lhe beijo na face como prova disso, despedindo-se com frase inspiradora e crescente de esperança:

- Hoje à noite, vai até a minha rua, senta-te no banco ao lado da fonte, olha a terceira janela, espera pela luz, assim que a vires toca à porta que ela se abrirá...


Invadiu-se o coraçao do apaixonado, sentiu-se incapaz de emoções, possuído pela esperança e pela expectativa.
Apareceu na fonte, ainda antes do sol se pôr, jurou nunca ter desejado alguém de igual forma. Esperou, olhando a janela ainda com o sol por cima, sabendo sempre que tinha que esperar pela noite, não se contentando nunca em olhar para outro lado. Fez-se a hora, fizeram-se o par de horas, o sol desceu, escondendo-se atrás do prédio revelando quase em simultâneo a lua e o vento gélido que a acompanhou.

Chegou a hora.
Ele olhou para cima e não viu luz na pequena janela do quarto. Ansiava por ela, todo ele se movia por aquela luz de presença com significado escondido e poderoso. Mas nada! O quarto permaneceu no seu olhar durante horas, escuro como a derrota, sombrio como a decepção, negro como a noite fria que o invadia dos pés à ponta do cabelo, mantendo o corpo vivo apenas por consideração ao coração.

Passou assim a noite, até o frio levar com ele todo o corpo do apaixonado, à excepção do coração, que ali ficou para sempre, à espera do sinal.

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sexta-feira, outubro 26, 2007

12 horas em ponto

Noite na cidade, os vidros do prédio em que nos centramos reflectem a pouca luz de uma lua desfalecida. No interior do 3º andar o apartamento está todo às escuras, inundado apenas por essa luz fraca e constante.
No quarto encontramos Mário, deitado na sua cama, pouco coberto pelos lençois, não está imóvel, longe disso, está irrequieto e provocador de gemidos, murmura violentos discursos pelo canto da boca praticamente cerrada numa espécie de reacção ao indesejado, como se temesse algo e não o podesse controlar.
Mário está no meio de um sonho, e durante todo esse tempo encontra-se numa realidade diferente, ao que parece um mundo fantasiado mas temido, um mundo em que encontra todos os seus medos e recorda as saudades mais frágeis e mortas, está num mundo com vida própria, que se incorpora e revela a cada desejo ou lembrança revelada pela mente.
Aos poucos qualquer pessoa que o ouvisse perceberia pelos seus relatos a situação em que se sonha:


É dia bem iluminado e encontra-se em casa, toda as paredes têm cores variadas, ora vivas, ora doentias e deprimentes. Ele procura o casaco, um casaco específico. Chega ao quarto e para onde quer que dirija o olhar só vê casacos não pretendidos, todos eles se parecem mover como que suplicando para serem os escolhidos a vesti-lo, alguns falam com ele, desejam-lhe bom dia, dizem que ele está com bom aspecto, outros dançam ou movimentam-se pelo ar, há mesmo um casaco que tem a manga direita para cima, como se tentasse motivar a escolha com um dedo no ar, dedo esse inexistente. Todos procuram a sua distracção, todos o tentam fazer esquecer do seu objectivo. A busca é intensa, onde está o casaco castanho? Não o encontra, vai ter de sair sem casaco. Olha para o pulso e não tem relógio, em vez disso as horas estão-lhe cravadas na pele, os ponteiros em sintonia, entrelaçados um no outro apontam a direito as 12 horas, nem mais minuto, nem menos minuto.
Apressa-se e inicia corrida ao longo do apartamento, tem que sair rápidamente ou vai chegar atrasado. Aproxima-se da sala e procura a porta que dá para o exterior, mas esta não está no sítio em que sempre se encontra, mudou de sítio, Mário quase desespera. Faz depois, percurso de 360º com os olhos em toda a sua volta, a início não vê qualquer porta, até as que dão para o quarto e para a cozinha desapareceram, onde antes se encontravam restam apenas as marcas na parede. Motiva-se novamente a olhar todas as paredes com mais atenção, repara agora em portas nunca antes vistas, todas elas ligeiramente abertas e à espera de serem empurradas. Com o pé e numa forma de desespero abre-as e espreita o destino de cada uma. Todas elas são entradas para memórias e situações vividas anteriormente. Revê velhos amigos, situações embaraçosas na escola quando era muito miúdo, o dia em que entrou no curso, até os seus avôs maternos estão lá, numa porta bem antiga e quebrada em vários sítios. Sente-se consumido pela saudade e pelo desgosto, gostava muito de voltar a entrar por grande parte das portas e dava tudo para manter fechadas muitas outras. Sente-se então a desmaiar e as pernas recusam-se a ficar esticadas, tomba de joelhos e leva as mãos ao rosto em desespero, é então que sente junto à sua face um bafo quente, reconhece-o e tenta resistir à tentação da vista, sente o pelo de uma criatura tocar-lhe a cara e de repente uma lambidela humida na mão. Levanta a cabeça e olha o seu cão de infância, provavelmente tinha entrado por uma das primeiras portas, o coitado terá visto o dono esquecido há anos e não resistiu. Mário pega no osso que ele segura na boca e de imediato o cão responde com um abanar violento de cauda que quase o desequilibra, atira-o pelo ar fazendo pontaria a uma das portas e o cão de imediato volta ao local de onde veio, sem antes ladrar ao dono uma última vez em jeito de felicidade.
Recuperado levanta-se e repara numa porta à sua frente que não abre completamente, faz força e apoia todo o seu peso na porta de forma a deixá-la escancarada, mas não consegue, a porta não abre por nada. Decide então espreitar pelo canto entreaberto da mesma, do outro lado só vê escuro, não, está lá mais qualquer coisa! Destaca uma cara no meio da escuridão, não é familiar mas de alguma forma fá-lo sentir seguro.
Tenta ajeitar-se melhor para centrar o olhar na cara da rapariga, mas sente o seu pulso tremer, parece estar a ganhar vida própria, só passado breve desespero percebe que são as horas cravadas na pele que assinalam novamente as 12 em ponto, todo ele treme, como se fosse um despertador...

O despertador está a tocar, pensa Mário ainda a dormir, o despertador está a tocar, pensa Mário já meio acordado, toca mais uma vez e Mário finalmente acorda. Que sonho estranho. Lembra-se do cão, tem saudades daquele cão, as caras dos avós pairam na sua cabeça, há muito tempo que não se lembrava deles tão claramente.
Levanta-se finalmente e após rápido duche veste-se também à pressa, não pode chegar atrasado outra vez. Coloca o relógio no pulso e tenta-se lembrar onde pôs o casaco, na sala percorrida entretanto não está, no quarto também não, lembra-se finalmente que não chegou com ele a casa, deixou-o muito provavelmente em casa dos pais no dia anterior, falaram de tanta coisa ao jantar, acha que os avós foram também tema de recordações. Memórias bem vindas sem dúvida.

Sai de casa sem casaco, está calor na rua, também não é preciso outro. Começa a percorrer os 3 quarteirões que o levam ao emprego e de repente, na rua inundada por gente matinalmente resmungona, parece-lhe ver em duas faces passantes, a cara dos avós, jura aliás que os viu, eram mesmo eles. Olha para trás e vê os dois velhinhos que acabaram de passar por ele a afastarem-se no sentido contrário, segue-os à distância para não parecer um louco, com certeza eram só duas caras associadas ao sonho. Eles entraram num autocarro, ele entrou também. Sentaram-se os dois lá ao fundo, Mário ficou nos lugares junto à porta. Olhou-os, eram de facto muito parecidos, foi então que sentiu um bafo quente na perna, lembrou-se do seu cão e virou-se de imediato, era tal e qual o seu, mesma raça, mesma cor e o mesmo ar descontraído de quem está prestes a aprontar alguma.
Olhou várias vezes o cão e os dois passageiros sentados ao fundo, tudo tão estranhamente familiar, olhou então em frente pela porta meia aberta do autocarro e viu lá fora no meio da claridade o mesmo rosto tranquilizador do sonho, agora sim bem visível, bem bonito, bem ansioso de o conhecer.
Saiu do autocarro e foi ao seu encontro, deixando os outros três pedaços de sonho continuarem a viagem.

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quarta-feira, outubro 24, 2007

20 de Dezembro

Dia 20 de Dezembro e são 10:35, pelas portas abertas em pânico do hospital Santa Maria entra Manuel Saraiva em maca. Manuel apresenta ferimentos provocados por chamas, queimado por uma fábrica de equipamentos pirotécnicos que decidiu fechar-se a si própria provocando intenso fogo de artifício assassino como forma de comemoração.
Manuel não sente já o corpo, apenas sente a dor, apenas sente o ardor provocado pela pele carburada que quando exposta à luz parece capaz de o fazer desmaiar em agonia.
Passa-lhe pela cabeça que irá morrer no meio daquelas paredes brancas, sentindo o cheiro a enfermaria, passa-lhe pela cabeça que dava tudo para morrer noutro local. Gostava mesmo muito de poder ver os filhos à sua volta quando isso acontecesse.
É chamado às urgências o doutor Guilherme Amaral e passada uma hora Manuel já se conformou. Ainda bem que não vai morrer rodeado por aquelas paredes brancas e pelo cheiro a medicamentos.

Sente-se ardido, mas sente-se salvo.


Dia 20 de Dezembro e são 12:40, pelas portas abertas em desespero do hospital Santa Maria entra Maria Fontinha em maca. Maria caiu em casa quando se preparava para aliviar a prateleira mais inacessível da dispensa, de um aparelho de meia duzia de quilos. Era baixa, à volta do metro e meio, chamou o filho para lhe chegar ao aparelho, o filho não veio e ela cansou-se de esperar, puxou um banco e cresceu em cima dele, quando avistou a geringonça esticou o braço e não terá esperado tanto peso. Desequilibrou-se e ao tentar segurar-se na prateleira revirou a dispensa aterrando violentamente, seguiu-se uma chuva de objectos demasiado pesados.
Maria tem muitas dores, não se lembra de ter alguma vez tido dores parecidas e tão intensas. Olha-se e apercebe-se que os braços não estão no sentido correcto. Começa a desesperar e passa-lhe pela cabeça que nunca mais poderá pintar, que não poderá continuar a sua razão maior de vida, que nunca pintará quadro digno de admiração alheia, que nunca poderá ter a sua exposição e explicar os significados ocultos de cada quadro pintado a meias pela imaginação e pelas mãos.
Apercebe-se então pelo que diz o paramédico ao médico Gilherme Amaral que terá fracturado os dois braços, uma perna e duas costelas. Passa hora e meia e Maria já se conformou. Ainda bem que os braços voltaram ao sítio e que poderá retractar emoções em tela.

Sente-se uma múmia pendurada, sente muito calor, quase que desespera com a situação, mas sente-se salva.


Dia 20 de Dezembro e são 15:54, pelas portas abertas em desassossego do hospital Santa Maria entram André, Manuel, Isidra e Alberto Carvalho, todos em maca. Família inteira que ia para casa da Avó no interior do Alentejo. Tinham partido bem cedinho de Guimarães, eram 7 horas da manhã estavam já André e Manuel, os filhos, à bulha no banco de trás, Isidra a tentar parar a confusão e Alberto a aviar o carro das últimas bagagens que pareciam intermináveis. Alberto entrou no carro e de imediato os “miúdos” pararam com a confusão com medo de uma reprimenda mais destabilizadora que a dada pela mãe. Apanharam a autoestrada de forma a demorarem o menor tempo possível, vieram sempre a 140 de modo a demorarem o menor tempo possível, Alberto ultrapassava outros carros sempre que podia, tudo de forma a demorarem o menor tempo possível. Alberto não gostava de conduzir, nunca gostou, mas conduzia sempre rápido, não gostava que as viagens demorassem muito tempo.
Por desgraça, nunca foram apanhados pelas brigadas de trânsito e acabaram por embater fortemente num menos dotado condutor que tentava evitar que os veículos que o seguiam o deixassem para trás. Alberto antecipou o embate e soltou grito de precaução para a restante família, grito para se protegerem e para os filhos estarem quietos no banco de trás. Todos tinham cinto, mas todos ficaram inconscientes com excepção do mais novo, rapaz herói e capaz de ligar para as emergências do telemóvel do pai, antes de inundar a cara de lágrimas ao ver a familia aparentemente imóvel.
O mais novo, chamado André e entrado no hospital também estendido apenas por precaução, só queria que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Passou-lhe pela inocente cabeça que nunca mais bulharia com o mano no banco de trás, que nunca mais ouviria as reprimendas pesadas do pai, que nunca mais abraçaria a mãe, que nunca mais veria mover-se nenhum dos três partilhantes do carro de grandes velocidades.
Vários médicos vieram ao encontro das macas, Guilherme Amaral era um deles, levou para a sala de operações o senhor Alberto que apresentava graves lacerações na cabeça.
Três horas depois o pequeno André já se conformou. Vai poder voltar às bulhas, ser fortemente reprimido e abraçado, mas espera não voltar a fazer viagens velocistas.

Sente-se assustado, mas sente-se salvo.

Dia 20 de Dezembro e são 19, 20, 21 horas e alguns minutos. Pela porta do hospital Santa Maria entra gente ferida, em maca ou pelo próprio pé. Pessoas acidentadas em pequenas ou graves situações, ou em casa, ou na rua, ou na estrada. Passam pela cabeça de todos as piores esperanças, mas nesse dia nenhuma se verifica. O doutor Guilherme Amaral está de serviço, é chamado todas as vezes que se encontra disponível.

Passado longa hora ou curtos minutos, todos eles se sentem salvos.

É agora dia 20 de Dezembro e são 23:43, pela porta de um qualquer apartamento citadino entra Guilherme Amaral assustado. Passa-lhe pela cabeça que o mundo não está minimamente ao alcance de ninguém, sente-se incapaz de explicar porque salvou tanta gente num dia. Passa-lhe pela cabeça que no dia seguinte será incapaz de salvar qualquer pessoa que entre pelas portas abertas em urgência do Santa Maria.
Passados breves segundos, Guilherme já se sente conformado. Com a mulher nos braços sente-se capaz de fazer tudo, sente-se capaz de salvar qualquer pessoa.

Sente-se recompensado e sente-se salvo.

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sábado, outubro 20, 2007

O miúdo e a adega

Estava escuro lá dentro. Ele olhou para o chão e não conseguiu avistar os pés, estendeu as mãos na frente da cara e agitou-as no ar, nem um dedo conseguiu ver, só se apercebeu que tinha mãos quando intencionalmente provocou o contacto da sua mão com o nariz.

Sentia-se o ar denso e um cheiro a mofo pairava no ar, as sujas partículas entrenhavam-se no seu nariz e provocavam uma corrente quase infinita de espirros rebeldes e abafados, mas que raio...nem um raio de luz?

Com dificuldade estendeu a mão para trás e agarrou na maçaneta da porta, voltou a abri-la e conseguiu pela primeira vez identificar 10 metros quadrados de adega à sua volta. Tentou mesmo arranjar qualquer coisa que mantivesse a porta aberta de forma a poder satisfazer o pedido do seu pai e levar uma garrafa de tinto daquele ano para a recheada mesa de refeição. De certeza que os convidados ficariam impressionados, um miúdo só com 9 anos entrar numa adega escura só para ir buscar o vinho ao seu pai, “aquilo sim era coragem”.


Com 9 anos tem-se medo de todo o tipo de coisas que não fazem mal a ninguém. O escuro é disso primeiro exemplo. É raro o rapaz daquela idade que não tem medo do preto numa divisão da casa, é normal que isso aconteça quando tudo aquilo em que se pensa (quando se tem aquela idade) são coisas que já passaram na televisão, ou em qualquer filme ou história de aventura e terror, ou porque os amigos relataram uma terrível história sobre o que acontece a rapazinhos quando ficam sozinhos em divisões sem luz, claro que é tudo mentira, mas também é claro que sem uma década de vida acredita-se sempre mais no terrível e fantástico do que no normal, é uma forma intuitivamente intencional de acreditar que tudo tem o seu mistério.


Voltando ao relato, concentrou-se então Jeremias (nome do rapaz de 9 anos), na procura de qualquer “mecanismo” que lhe permitisse deixar a porta aberta, de forma a reduzir o medo da situação e tornar tudo muito mais controlável. Procurou e olhou durante algum tempo à sua volta, mas pressionado pelo tempo que devia demorar a fazer o favor ao seu pai, acabou por não conseguir encontrar sequer um calhau que fixasse a maldita porta rangedora. Deixou-a por fim fechar-se e soube que tinha que se aventurar naquela espécie de mundo negro.


Com muita calma iniciou o seu percurso. Sabia que tinha que dar à volta de 30 passos até chegar ao depósito da colheita anual mais recente, e então, tentando manter a calma, deu primeiro um passo, depois outro e quando pensou estar relativamente perto dos mecanismos de colheita do vinho (que estavam normalmente colocados perto da porta), estendeu as mãos e agachou-se ligeiramente, tentando evitar assim alguma canelada indesejada. Passou desta forma o primeiro obstáculo e com o crescente entusiasmo cresceu também a imaginação. Agora, segundo a fantástica mente de um rapaz de 9 anos, teria também à sua frente a rainha das aranhas, um aracnídeo tão grande que comia todas as outras aranhas se estas estivessem num raio de 5 metros. Segundo o vizinho de baixo (de 14 anos), a rainha formava-se de patas espessas que pegariam facilmente em Jeremias e o levariam para o seu casulo rico em teias pegajosas e restos de anteriores vítimas.

O herói calculou que do seu lado direito, imaginada e encostada à parede, estaria uma arma invencível contra aranhas, que disparava uma mistura de insecticida e rede que a deixaria imóvel. Imaginado e feito, alcançou a arma, disparou 3 vezes em frente e ao terceiro disparo jurou ter ouvido o ginchar do insecto. Estava morta! Ah pois estava. Mesmo assim e para que não houvesse qualquer dúvida, Jeremias calçou as suas botas espicaçantes e marchou sobre a inimiga.


Tinha agora o caminho aberto até à ambiciada garrafa. Manteve as mãos a proteger as pernas e deu passadas largas no sentido do depósito de garrafas, reparou que estava na sua frente quando um dos seus pés bateu na madeira que o caracterizava. Depois de sentir essa mesma madeira nas mãos, tentou então perceber onde estaria uma garrafa, era uma pena o depósito estar meio vazio, tornava claramente a sua missão ainda mais difícil.

Imaginou precisar de um localizador especial e sacou-o da mala que entretanto já levava às costas. Ligou-o e de imediato com a ajuda do laser imitido, identificou na penúltima prateleira uma garrafa em perfeitas condições de ser servida. Alcançou-a, limpou-a e meteu-a debaixo do braço, já “só” faltava o caminho inverso.


Teria o caminho de volta exactamente o mesmo tamanho que o de ida se entretanto a adega não se tivesse multiplicado em espaço para o triplo do tamanho.


Triplo do tamanho e com lobos sobredotados pelo meio. Lobos que viam nele uma espécie de almoço raro e rico em proteínas. Foi então que o tecto da adega cedeu mais ou menos junto a si e um ser encantador desceu dos céus vindo-se colocar a seu lado. Saltou-lhe para as costas, pegou nas bombas que se encontravam perto da nuca e enquanto o bicho efectuou voo razante, Jeremias lançou-as para perto dos lobos que sucumbiram às impressionantes explosões. Perto da porta, abandonou as costas do ser e rebolou para junto da entrada, esticou o braço, alcançou a maçaneta e rodou-a abrindo em toda a sua frente um raio de luz que de imediato inundou a adega fulminando os restantes seres que entretanto se tinham aproximado de si.


Por fim saiu para o exterior, pegou na garrafa que levava debaixo do braço e preparou-se para ser recebido como um herói pelo pai e restantes convidados.

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quinta-feira, outubro 18, 2007

Batalhão 48

A manhã nasceu vermelha. Traduzia talvez os dias passados naquelas terras africanas em que o batalhão 48 se encontrava. Sangue derramado diariamente, numa luta por algo que já nem era deles. Luta sem lado justo ou correcto, luta entre homens iguais e com os mesmos objectivos, luta por paixão ao mesmo país.
O 48 partiu de Lisboa faziam agora dois meses. Batalhão sempre visto pelas forças armadas como uma força especial de espionagem e de reconhecimento de territórios altamente perigosos, foi dos primeiros a ter que partir para África. Os objectivos da pátria a isso obrigavam.
Resumia-se agora a uns solitários cinco homens. Perdidos algures no mato, sem qualquer meio de comunicação com a base, ou forma de se revelarem vivos á sua terra mãe.

Pedro era o mais novo dos cinco, com 24 anos mal feitos, era um adulto crescido à pressa que tinha como únicos valores, a pátria e os colegas de batalhão. Pedro vivia para aquela guerra e não tendo qualquer recompensa em casa para a qual valesse a pena voltar, importava-se apenas com a possibilidade de voltar acompanhado pelos colegas de batalhão. Nem que fosse pelo menos um, Pedro jurava que sozinho nunca voltaria ao seu país. Ou acompanhado ou morto, era o lema. Por esta razão foi sempre um dos soldados de patente mais alta no batalhão, era agora o lider dos outros quatro que a ele obedeciam e admiravam.

Era sábado, ou pelo menos era o que a maioria pensava ser. Toda a semana que agora acabava tinha sido passada em missão de reconhecimento, tinham começado 25 e após duas cobardes emboscadas por parte das melicias, restavam uma mão cheia de afortunados. Estes cinco sentiam todos os dias levar atrás de si as almas dos outros vinte quando na verdade apenas transportavam as placas com os nomes dos restantes bravos falecidos.
Andaram toda a madrugada em passo acelerado, nem se lembravam da última vez que tinham dormido, alimentavam-se em andamento e rendiam-se na liderança do grupo hora a hora. Nunca paravam.

Com o primeiro sinal de claridade veio o primeiro som suspeito temido. Barulhos de carregadores a serem colocados nas respectivas armas davam nova sensação de emboscada.

Pedro apercebeu-se de tudo e deu ordem para o 48 se confundir com o solo. De imediato o quinteto estava englobado nas ervas altas características daquele tipo de matas africanas, e mesmo que o inimigo passasse perto nunca os veria. Era essa a única vantagem dos dois confrontos anteriores, nunca mais seriam apanhados noutro acontecimento de nível de cobardia semelhante. Nos minutos seguintes não se ouviu qualquer barulho, de qualquer forma nunca ninguém se atreveu a aventurar ou abandonar as respectivas posições, sabiam por força de outras mortes que fazer o mínimo movimento era sinónimo de denúncia de posição e consequentes eventos trágicos.

Com a primeira luz avermelhada do sol e tom aguarela do céu, o bosque foi minimamente iluminado. Foi nessa altura que todo o batalhão reparou no reflexo da estrela maior em lentes próximas. Espreitaram por entre as ervas e avistaram-no novamente vindo de 2 binóculos no meio da mata e bem apontados para cima, para o céu.

Todos estranharam mas apenas 1 se moveu.

Pedro rastejou assim inaudivelmente e quando deu com dois pares de pés a 5 metros de si, parou, encheu-se de coragem e espreitou pelo meio de dois eucaliptos. Dois soldados de pele escura olhavam o céu encadeado de cores e atrás dos dois, pousadas no chão, estavam as duas espingardas e o restante armamento causador de desgraças.
Pensou no que era suposto fazer e não foi capaz de dar a ordem, não seria justo aqueles homens serem mortos por segundo amor em comum.

A ordem foi então dada no sentido de passarem sem serem vistos e os cinco rastejaram para longe do inimigo continuando o seu percurso no sentido da fronteira.
Nunca nenhum deles duvidou minimamente da justiça daquela decisão.


Realmente já bastava a terra.
Não era tempo de os homens se começarem a matar também pelo céu.

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quinta-feira, outubro 11, 2007

Pássaro esfomeado

O pássaro foi visto a passar na avenida principal. Foi visto a comer pedaços de pão dados por um velho compreendedor da natureza de ser pássaro. Foi visto no meio da praça, a bicar as sardinhas e os carapaus acabados de tirar da carrinha.
Bicou quase tudo o que era peixe, mas nunca tocou no salmão, provavelmente não gostava de salmão.
A coitada da peixeira viu o pássaro a estragar-lhe o peixe, enxutou-o uma.duas vezes. Desgraçado do pássaro não deixava o peixe, sempre a levar com o jornal e sempre a voltar ao mesmo sítio qual mosca irritante. Só deixou a comida quando se fartou, até lá parece ter andado a gozar com a dona da banca.
Desgraçada da peixeira que já nem podia ver o afoito animal à sua frente, tanto que quando o almoçado pássaro acabou a sua bela refeição e saiu lentamente da praça, a peixeira desesperada permaneceu em guarda da sua banca, sempre atenta aos movimentos do vândalo não fosse ele tentar nova investida. Nunca percebeu a peixeira, que o animal bicou até não ter mais fome, e lá ficou ela, em volta da banca, com cara de poucos amigos.

Joana viu isto ao longe, estava sentada num banco de jardim perto da praça, viu perfeitamente o gozo que o pássaro deu à vendedora, riu-se, gargalhou e deliciou-se durante os 20 minutos com todo aquele episódio, chegou a promover o pássaro a herói ou interprete favorito de uma cena incrivel de acção.

No final desses 20 minutos o pássaro dirigiu-se ao banco de Joana, como se tivesse percebido que tinha uma admiradora. Numa espécie de passeio de reconhecimento, andou à volta do banco, olhou várias vezes para Joana, voou para a suas mãos e mesmo antes de se ir embora para o meio do parque, deu-lhe uma inocente bicada na mão direita.
Joana não sentiu qualquer dor, era quase como se a bicada tivesse sido uma qualquer manifestação de carinho por parte do animal.


Passado um pouco lembrou-se.

O seu pai também nunca gostou de salmão.

E riu-se.

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quarta-feira, outubro 10, 2007

Desconhecidos de gosto semelhante.

Ele chama-se Rodrigo Albuquerque. Sempre foi rapaz aplicado e apreciador de boas artes como o cinema e a música. Filho de pais abastados e nascido numa quinta alentejana, nunca lhe faltou nada e nunca tomou nada por garantido, um tipo de educação que apenas foi possível por ter vindo viver com os avós para Lisboa. Tivesse ficado no Alentejo na bela quinta paternal e teria muito provavelmente se formado numa “besta” em vez de uma pessoa com valores e costumes como sempre foi (pelo menos era isto que na época as gentes de lisboa diziam)...

Rodrigo foi aquele tipo de rapaz que sempre se deu muito com as pessoas, mantinha longas conversas com adultos do dobro e triplo da sua idade e nunca deixava má imagem, ficava-se sempre com a sensação que tinha bons princípios, boa mente e bom coração. Era muito provavelmente um “tipo” às direitas, apesar da tenra idade de 19 anos.


Ela chama-se Sofia Madureira. Moça para 21 anos (mais 2 que Rodrigo portanto), sempre foi muito chegada à pouca família que tinha. Nascida e crescida em Lisboa, criada pela avó (um pouco à semelhança de Rodrigo) e adepta confessa de leitura e escrita, sempre foi seu sonho ser escritora. Não precisava de ser uma escritora conhecida, bastava que escreve por prazer.

Sofia foi sempre o tipo de pessoa que se contentava com pouco e que com esse pouco conseguia sempre emanar segurança e felicidade em tudo o que fazia. Era também muito parecida com a avó, tanto em aparência como em maneira de ser. Pareciam como que clones uma da outra e eram separadas por 40 anos de diferença.

Havia logo à entrada da casa de Sofia duas fotos que comprovavam esta parecença, fotos essas objectos de brincadeiras feitas a visitantes levados a pensar que as caras nas fotos eram de uma e da mesma pessoa.


Numa tarde quente, Sofia e Rodrigo por fruto de mero acaso, coincidiram no café que escolheram como seu eleito para o desejado café da manhã. Nenhum dos dois tinha ali estado antes e tinham sido muito provavelmente atraídos pelo cheiro a pão acabado de fazer que invadia as ruas junto do estabelecimento.

Rodrigo chegou primeiro, havia apenas uma mesa de dois lugares livre em todo o café, reparando nesse facto depressa se sentou e chamou o empregado. O habitual para a sua boca foi pedido e instantes depois estava servido e pronto para acompanhar o pequeno almoço com um belo livro comprado na véspera.

Sofia chegou uns 10 minutos mais tarde, entrou no café e olhou em redor, nem uma mesa livre, nem sequer no balcão sobrava um banco onde pudesse pousar a sua encantadora fisionomia. Preparava-se já para sair, quando reparou num lugar livre numa mesa de duas pessoas, pensou para si se o jovem que estava aí sentado se importaria de a partilhar, ainda por cima estando a ler era provável que não se importasse, resolveu tentar a sorte.


-Desculpe, bom dia!
Rodrigo de imediato espreitou por cima do livro acenando simpaticamente com a cabeça.
-Bom dia!
-Será que seria possível acompanhá-lo ao pequeno almoço? Não precisa de falar comigo, eu trago um livro como o senhor e por isso nem sequer farei muito barulho.

Rodrigo não acreditou à primeira, pensava que só podia ser brincadeira ou trama de um qualquer amigo seu...Mesmo assim obviamente que concordou com o pedido, nada lhe daria mais prazer.
- Com certeza que não me importo, faça favor de se sentar, é servida de café?

Sofia não estava habituada a tais confianças de estranhos, mas tendo sido ela a começar partilhou o café com o simpático rapaz, com certeza as suas intenções eram apenas nobres justificou para si mesma.

Ao café juntou o seu pedido e rapidamente como forma de facilitar a integração na mesa, retirou da mala o livro que ultimamente lhe tomava os tempos livres.

Rodrigo entretanto retomado na leitura, olhou mais uma vez por cima do livro e reparou na capa do livro de Sofia, era de facto igual ao dele, eram de facto dois livros iguais na mesma mesa de café. Não disse nada apenas sorriu com vontade.

Sofia apercebeu-se pouco depois e lançou no ar forte exclamação seguida de um riso controlado mas puramente instintivo...

- Gosta desse livro? – Perguntou numa espécie de desafio.

- Tanto como a senhora gosta do seu tenho a certeza! – Respondeu Rodrigo empatando o desafio.

Os dois fitaram-se nos olhos um do outro e nos momentos seguintes gargalharam de forma descontrolada, cada um para seu lado e levados pelo espanto e improbabilidade da situação.

Seguiu-se conversa tremendamente agradável e pouco usual entre dois completos desconhecidos de gosto semelhante. No fim, combinaram os dois, encontrarem-se na manhã seguinte naquela mesma mesa, a hora seria a mesma, tal como os livros.

A manhã seguinte chegou e apenas um deles apareceu. Rodrigo sentou-se à mesa e terá esperado bastante tempo, segundo ele foram duas persistentes horas não recompensadas com a cara de Sofia.
Não perdeu a esperança, e durante toda aquela semana, tomou o pequeno almoço na mesma mesa, com o mesmo livro. A companhia nunca apareceu, e ele por fim conformou-se.

Volvidos três anos e num dia em que ia a passar pela rua do café, Ricardo fez-se ao pequeno-almoço sem ter em mente Sofia. Olhou em volta procurando lugar e tudo lhe pareceu ocupado, nem ao balcão havia um mísero banco para o seu desgraçado traseiro, preparava-se para ir embora quando viu um lugar livre numa mesa de dois. Nunca de facto associou aquele a outro momento e pediu para se sentar tal como Sofia tinha feito 3 anos antes. A resposta nunca mais a esqueceu:

- Bom dia! Gostou do fim do livro?

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segunda-feira, outubro 08, 2007

A Varanda

Centro de Lisboa, um prédio já degradado pelas manifestações do tempo deixa transparecer calma e tranquilidade. Todo esse aspecto rústico lhe dá mais encanto e o enquadra melhor na rua lisboeta desgastada e harmoniosa em que se situa.
Centramo-nos numa varanda do prédio. No centro desta estão duas cadeiras de verga também já velhas e todos os ornamentos denotam desgaste intenso, no entanto e entre as cadeiras e as barras de segurança as plantas e os vasos recém regados acusam o uso da casa. Amarelas, vermelhas e azuis sáo as flores que diversificam o ambiente, transmitindo-lhe harmonia, claridade e vivacidade. Podemos mesmo dizer que nada naquela varanda é triste, até ó próprio desgaste dos materiais transmite uma sensação agradável de uso adequado.

Apercebemo-nos que quem lá vive é já de uma certa idade. Quem lá vive já passou por muita supresa ora agradável ora desagradável e está agora a aproveitar a pausa bela proporcionada pela merecida e tardia reforma para viver da forma mais descontraída possível.
Vê-se com a simples observação que aquela varanda é o paraíso momentâneo de alguém, toda ela transparece isso como se fosse parte do senso comum de quem a mira.

O senhor Rogério passa lá todas as suas manhãs. Desde muito cedo que quem mora naquela rua o vê instalar-se no seu pouso preferido da casa. São sempre umas 8 horas matinais quando é visto pela primeira vez diária, traz sempre consigo um copo bem alto de leite, uma torrada ainda a fumegar e um indispensável livro de poesia (sendo este hábito uma espécie de ritual que toda a gente na rua conhece bem).
Diz quem perguntou que o senhor Rogério considera um bom poema a base para todo o dia, é a partir dele que é escolhido o tema em que vai pensar durante toda sua jornada. Decisão importante esta, a de escolher assunto para matutar durante 14 horas seguidas, comparando todos os seus pontos com a natureza observável a partir de um simples varanda.


Senhor Rogério é um contador de histórias, e como qualquer homem digno desse dom tem também ele magnífica companheira escutadora das mesmas. Chama-se senhora Irene e percebe-se perfeitamente que no seu tempo, seria madame para mover atrás de si montanhas de homens contemplando o seu sorriso ou quem sabe mesmo uma pequena amostra malandra de um calcanhar perfeito.
Têm os dois com eles, um cão a quem ninguém sabe o nome senão os próprios donos, é um pastor alemão de grande porte e quase todo ele preto, apresenta apenas uma pequena mancha creme na cabeça, como que formando uma crista de cor.


São avós de 5 pequenas crianças, 2 rapazes e 3 raparigas. São vistos na mesma varanda os 5 juntos todos os domingos, chegam por volta da hora do almoço e passam a tarde naquela pequena àrea arejada do apartamento. É mais ao menos nessas alturas que os vizinhos mais próximos conseguem acompanhar algumas das fantásticas odisseias narradas pelo babado avô que diverte os netos como muito provavelmente foi também ele divertido pelos seus antepassados.
Histórias passadas todas elas ao ar livre, para que a varanda possa servir de cenário para cada uma delas e para que nas tardes seguintes às histórias os netos possam encarnar as aventuradas personagens contadas. Vê-se de tudo e a dona Lurdes do prédio mesmo em frente já reparou que o gigantesco cão alinha ele mesmo nos contos e que tanto é um camelo numa história como é um leão noutra, segundo esta o cão até já foi um tubarão certo dia em que a varanda ficou enxarcada de àgua e utensílios de pesca.

A varanda, aquela varanda, é como já disse paraíso do Senhor Rogério mas não só, é ela também paraíso para os filhos do senhor Rogério que todos os domingos têm um tempinho para namorarem suas esposas acompanhando-as com cinemas e idas ao teatro.

Aquela varanda é também e acima de tudo, não só um paraíso como um mundo para os netos do senhor Rogério e da senhora Irene.

Um mundo em que o avô é o Rei e o Super-Pescador, um mundo em que a avó é a Rainha e a Donzela em apuros, o mundo em que os netos são o grupo de aventureiros nas histórias e na varanda do avô.

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quinta-feira, outubro 04, 2007

A bela vizinha

Luís saiu à rua como fazia todos os dias. O rosto acabado de lavar agregava ainda pequenas e escorridas particulas de àgua e a sensação causada pelo vento na cara refrescava-o em todas as medidas. Este era já um hábito rotundo de Luís, era também a única forma possível de acordar do lado certo da vida, era aquilo que fazia a diferença entre desejar bom dia à primeira pessoa com quem se cruzasse na rua ou simplesmente ignorá-la com cara de poucos amigos, e não, não existia mesmo um meio termo.

O dia era frio, olhou para o termómetro do centro da rotunda perto de casa e apercebeu-se que a temperatura tinha descido mais do que estava à espera, era a tal frente fria que vinha dos países nórdicos, só por isso se justificavam os 4 graus matinais que provocavam na fila da paragem do autocarro uma tremideira contagiante, desde o primeiro homem, mais velho e de barbas brancas (que pouco o deviam aquecer) até à empregada das limpezas que estava à sua frente e que abanava de forma eléctrica e em gestos súbitos o saco de detergentes que transportava.

Luís estava muito bem disposto como era já hábito nos últimos dias, estava muito provavelmente assim desde que tinha travado conhecimento com a bela vizinha que se tinha acabado de mudar para o 3º esquerdo do seu prédio, para Luís era claramente uma lufada de ar fresco aquela cara contagiante no seu prédio repleto de rostos de terceira idade. Uma coisa era verdade, nunca tinha tido problemas com aquela gente, eram tudo ex amigos de guerra do seu pai, que depois de regressarem da guerra tinham conseguido comprar aqueles apartamentos por baixos preços numa espécie de recompensa tardia pelo serviço prestado.

Lembrava-se perfeitamente de durante toda a sua infância ter ouvido o seu pai e todos os outros condóminos assobiarem uma música hit dos anos 60, era sempre a mesma “Love Me Do”. Era como que um ritual, todos os dias à mesma hora, ouvia-se o prédio assobiar aquela música, quer estivesse dentro de casa ou a passar por um outro andar, lá estava a música em ritmo crescente, sempre durante períodos curtos de tempo. Perguntou uma vez ao seu pai a razão, respondeu-lhe que era uma espécie de marca por estarem vivos, uma forma de verificar que ainda se mantinham no mundo, tinham começado com aquilo na tropa não iriam acabar ali, apenas quando um deles morresse a música morreria com ele e mais ninguém a cantaria ou assobiaria naquele prédio, deixaria de fazer qualquer sentido.

O pai de Luís era já falecido, naturalmente morrera de velhice, Luís fazia já 33 anos em Outubro e o seu pai só o tivera depois da guerra, quando se aproximava dos 40.

Voltando à nova vizinha, Laura era o seu nome, tinha acabado de trocar uma velha habitação nos arredores de Setúbal por aquele apartamento não mais recente mas em muito melhor estado e com muito maiores áreas, comprara-o a outro descendente de ex combatente falecido (restavam muito poucos no prédio em comparação com 10 anos atrás).

Luís conheceu-a em um daqueles episódios típicos em que uma pessoa vai a sair do elevado e outra a entrar, desastrado como normalmente era tropeçou no degrau entre a porta e o interior do elevador provocando altos e sérios risos da nova inquilina que lhe sorriu e estendeu a mão para o ajudar a levantar, Luís terá gaguejado nesta primeira vez um “b-b-b-bom d-d-dia”, tal como nas 2 ou 3 vezes seguintes, até que uma das vezes conseguiu finalmente dizê-lo numa sequência encantadora de construção de palavras à qual Laura respondeu com um “agora sim, é bom dia”.

“Fascinante” pensou ele vem voz alta, ao que se lhe seguiu um fechar da porta do elevador entre sorrisos honestos e arrepiantes.

Após número indeterminado de encontros no hall de entrada, Luís tinha-se finalmente decidido, jurou para si mesmo ali naquela paragem de autocarro que nesse dia quando chegasse a casa e ao cruzar-se com a vizinha fascinante (normalmente chegava à mesma hora...e se fosse preciso Luis esperava breves momentos para se cruzar com ela) iria convidá-la para sua casa, para beber um cafézinho ou se ela quisesse oferecer-lhe mesmo quem sabe uma bela tosta mista caseira como só ele sabia fazer.


Prometido e feito.

Eram à volta das 20 horas quando chegou a casa, o céu marcado ainda pelo horário de verão reflectia inúmeras cores que apenas poucos sabiam admirar, entre azuis, roxos e amarelos, todos cabiam naquela moldura invadida cada vez mais pela lua e menos pelo sol. Era sem qualquer dúvida o cenário perfeito para aquela proposta e trasmitia a Luís a segurança própria da maioria daqueles pedidos feitos em filmes épicos de hollywood.

Nem teve que esperar...Chegava perto da porta do prédio quando viu ao fundo Laura em passo relaxado, lembrou-se de deixar cair as chaves para ter que se baixar e perder algum tempo. A vizinha chegada então à entrada e sorrindo mal o viu fez questão de se baixar para o ajudar a recolher as chaves entretanto estratégicamente espalhadas, recolheram-nas e em olhares trocados constantemente entraram no prédio. Foi então que aproveitando toda aquela construção perfeita Luis fluiu um pedido impróprio para a sua boca:

-Quer tomar um café e quem sabe comer uma tosta mista? Ali em cima...em minha casa?
Laura espantada com tal pedido e de forma quase imediata respondeu:
-A tosta mista convenceu-me!
E os dois disfizeram-se em sorrisos e gargalhadas meio engasgadas, intencionais e sentidas.

Subiram os dois no elevador, entraram em casa e quando Luís se preparava para pedir o casaco à nova inquilina para proceder à sua arrumação, esta virou-se e rapidamente agarrando-o pela camisa beijou-o em gesto desajeitadamente perfeito.

Foi então que Luís se lembra ter ouvido, vindo de todos os cantos do prédio e durante aquele tremendo acto de felicidade uma música assobiada de forma breve e colectiva...


Não ouvia aquela música desde que o pai tinha morrido...

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segunda-feira, outubro 01, 2007

O carro verde

Estamos em 1990 nos campeonatos europeus de natação, André Santos é anunciado como o nadador da pista 6 perto do centro da piscina, vizinhos da sua pista são o campeão e o vice-campeão daquela mesma competição há 4 anos atrás.

André está nervoso, mal cabe em si na forma entusiasta como espera pelo tiro da partida, entre o momento em que sobe para o cubo de partida e o mergulho como que dá início aos 100 metros bruços André relembra-se de todas as eliminatórias anteriores que o levaram à meia-final em que se encontra. Se ficasse nos 4 primeiros lugares iria disputar a final, bastava chegar logo a seguir aos seus vizinhos e teria garantido um lugar nos 10 melhores europeus, o sonho estava mesmo ali à espreita.

André nem sempre adorou nadar… Quando era mais pequeno e tinha por volta dos 4 anos a sua mãe revelava-se impaciente com o facto do filho nunca gostar muito de estar dentro de água, e de nem sequer com braçadeiras nadar minimamente.

André gostava isso sim de carros, sabia as marcas e os modelos todos e adorava aquelas réplicas da Matchbox dos modelos que na altura circulavam por qualquer estrada.

A sua mãe sabia disso e serviu-se desse mesmo factor para iniciar o seu filho na natação. Inicialmente prometeu-lhe um carrinho desses se conseguisse atravessar a piscina em largura (o que seriam à volta de 6 metros) nadando de braçadeiras, de seguida serviu-se exactamente da mesma recompensa para fazer com que André fizesse a mesma distância mas desta vez sem braçadeiras. Prometido e feito, André começou a nadar tendo como objectivo uma maravilhosa colecção de modelos em escala reduzida das grandes “bombas” daqueles tempos.

Primeiro a piscina em largura para rapidamente passar à mesma piscina mas em comprimento (uns 20 metros), e praticamente sem dar por isso André transformou uma fobia num gosto, de tal maneira que devia ter à volta dos 11 anos quando deixou de ligar aos carros e se afincou no seu maior vicio desde essa idade: nadar.

Passou toda a sua adolescência a faze-lo, durante o Inverno na piscina do campo grande em Lisboa, durante o verão na casa de férias dos seus avós perto de Lourinhã.

Ninguém o parou desde aí, e do vício passou à competição numa questão de 2 ou 3 anos, primeiros os campeonatos regionais, depois os nacionais e agora finalmente o seu grande sonho, os europeus e a remota mas comovedora hipótese de uma ida aos jogos olímpicos.

“Atención” fez-se ouvir com atenção em todo o complexo desportivo, e André baixou o tronco preparando o seu mergulho perfurante – “Pffffaa”- ouviu-se a pistola recebida num misto de susto com barulhos de mergulho, para depois se seguir um crescente bater de palmas e de emoção.

André lembra-se de ter saído bem no tempo certo, nem antes do disparo nem depois dos outros mergulharem, lembra-se de espreitar para o lado e ver que estava ligeiramente adiantado aos seus vizinhos no momento em que entrou na água. Fez tudo como lhe tinham ensinado, primeiro a braçada submarina para depois aparecer à superfície e iniciar o seu estilo inconfundível de bruços (que diz quem viu que era o mais desengonçado possível).

Á passagem dos 25 metros era 2º, aos 50 metros era 3º, aos 75 continuava 3º e quando iniciava os 25 metros finais André deu consigo a pensar em carros, todo o tipo de carros, não devia pensar naquilo e ele sabia bem disso, mas naquele momento era mais forte do que ele, desde um simples Ford até um entusiasmante Jaguar, era isso um Jaguar Verde, não havia nada melhor que um Jaguar todo verde, quando voltou a pensar noutra coisa diferente reparou que tinha batido com a mão na parede, já tinha acabado a sua prova e olhando à sua volta via todos os seus colegas de piscina a olhar para o placar para conferir classificações, ele não fazia a mínima ideia da sua posição.


Foram aparecendo um a um os classificados, o primeiro era um tal campeão de Europa seguido de perto por um vice-campeão, depois para seu espanto apareceram mais uns quantos nomes, deste o turco da pista 1 até ao alemão da pista 7, todos pareciam aparecer antes do seu nome e quando deu pelo fim lá estava:


“André Santos –PORTUGAL-8º”


Procurou uma explicação por várias vezes, mas apenas conseguiu chegar a uma e sempre que o questionavam sobre aquele dia ele respondia a mesma coisa:


-“A culpa é da Jaguar, não tivessem eles feito um carro verde…”

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