segunda-feira, novembro 26, 2007

Batalha nas sombras

A sala estava parcialmente iluminada, os pequenos candeeiros que iluminavam a divisão tornavam visíveis apenas as paredes de um dos lados da sala. Com esta luz unidireccional, apenas metade da sala irradiava luz e qualquer objecto interposto entre essa mesma fonte de luz e as paredes iluminadas originava sombras desproporcionais ao seu tamanho real. A televisão estava ligada e focava um qualquer programa pseudocultural a quem ninguém prestava real atenção. Ricardo estava sentado no sofá da sala, distraído na sua imaginação, absorvido por mundos paralelos criados pelas suas células cerebrais quando de repente se focou na parede em frente a si. Começou por endireitar a cabeça e verificou que na parede a sombra multiplicava o seu crânio por 4 ou 5 vezes o seu tamanho, de seguida levantou um dedo, uma mão, o braço por inteiro, tudo de forma gradual até que as diferentes partes do seu corpo pudessem fazer lembrar outro qualquer objecto quando em sombra na parede iluminada.

Via-se claramente um pássaro, batia as asas sempre que precisava de subir, abria-as sempre que optava por planar mantendo a altitude, tinha um bico estranho, asas longas e parecia não apresentar qualquer tipo de membros inferiores. Era no entanto capaz de se equilibrar sem qualquer tipo de esforço nos únicos membros de que dispunha e parecia fazer dessa característica imagem de marca. Efectuava voos picados sobre um grupo de pessoas que se encontravam lá em baixo no solo, era também visível que dentro deste grupo de pessoas quase todas estavam armadas com utensílios afiados, espécies de lanças que procuravam espetar no pássaro sempre que este se aproximava o suficiente para os atacar. O pássaro terá tentando algumas vezes o ataque às suas presas, sem no entanto ter tido qualquer tipo de sucesso, até que os humanos ganharam confiança e começaram a adoptar posições dignas de combate, preparando conjuntamente possíveis ciladas à criatura dos céus. Foi quando se preparavam para a derradeira investida sobre a ameaça, que guinchos intensos invadiram o ar, guinchos esganiçados e provocadores de agoniante sofrimento para os ouvidos dos moralizados caçadores, que de forma instantânea largaram por momentos as lanças e levaram as mãos aos ouvidos em atitude de desespero e impulsiva protecção. Como a poluição sonora já o fazia prever, um número incontável de estranhos pássaros juntaram-se então de forma eficaz ao já anterior assassino dos céus. Ao se aperceberam do reforço dos inimigos, os desgraçados e quase surdos humanos iniciaram fuga louca por toda a planície, numa busca desesperada por qualquer espécie de abrigo que teimava em não aparecer. A perseguição foi longa, até que precisamente na altura em que os pássaros conseguiram obter posições vantajosas para que a chacina humana fosse certa, um herói no meio dos fugitivos deu com uma cave secreta nos escombros de uma anterior batalha e em gesto irreflectido de bondade, encaminhou os restantes para o local, salvando centenas de vidas à sua espécie. Permaneceram naquela cave tempo demasiado longo para ser contado, olhando uns pelos outros, juntando esforços para que nenhum inimigo os conseguisse perturbar, mantendo sempre uma vigia nos céus, espreitando por uma fenda oportunamente feita na madeira que lhes servia de tecto, tudo feito em turnos de 2 horas e 2 pessoas, para que nada escapasse aos olhos sedentos de protecção.

Foi num destes turnos, provavelmente no 4º ou no 5º turno, que um dos vigias detectou um outro animal povoando os céus, estranho também como os anteriores assassinos, mas no entanto estranhamente reconfortante para quem o observava, como se viesse acudir a desgraça dos prisioneiros. Efectuava voos de observação do terreno e procurava localizar os humanos, era dado adquirido que o fazia em protecção dos mesmos, essa certeza era facilmente confirmada pela criatura de raça humana que o dirigia, montado em enorme e consistente sela, abanando as rédeas do portentoso animal, gritando nomes para identificação dos prisioneiros. Para surpresa dos escondidos da cave este animal fisicamente assemelhado a um dragão não vinha sozinho em seu auxílio, a ele se juntavam meia dúzia de seres de dimensões idênticas e preparavam-se claramente para o combate, a forma em “v” nos céus denunciava facilmente essa intenção, bem como as armas dispostas no longo pescoço dos animais. O massacre ao inimigo foi então conduzido pelos reforços vindos do céu ao mesmo tempo que da gloriosa cave emanavam gritos de vitória e de consagração de vida. Tudo terá durado ao todo uma dezena de minutos, ao fim dos quais os restantes membros da inicial ameaça já batiam em apavorada retirada, procurando nos destroços do céu um meio de fuga e consequente salvação. Em meio de vitória estavam agora os sobreviventes da cave, que após longas horas abandonavam finalmente as suas posições, e juntavam-se à gloriosa perseguição final, todos lançavam as lanças e os braços no ar em gestos de vingança justificada e alegria incontida, sorriam uns para os outros, abraçavam-se como forma de celebração e esperavam pacientemente acolher a sua voadora salvação. A guerra já estava ganha e os vencedores juntavam agora esforços na salvação dos feridos, quando se vez ouvir em todo o campo de batalha uma voz superior…

-Ricardo!? Quantas vezes tenho que te pedir para pores a mesa? O jantar já está feito!

A superior mãe irrompia desta forma por entre os despojos da batalha. Interrompendo a batalha travada à hora de jantar na parede da sala, mesmo em frente ao sofá onde Ricardo estava sentado. Assim que baixou as mãos, Ricardo olhou uma última vez a parede, os dragões e os humanos tinham desaparecido e o campo de batalha estava agora deserto.

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