sexta-feira, outubro 26, 2007

12 horas em ponto

Noite na cidade, os vidros do prédio em que nos centramos reflectem a pouca luz de uma lua desfalecida. No interior do 3º andar o apartamento está todo às escuras, inundado apenas por essa luz fraca e constante.
No quarto encontramos Mário, deitado na sua cama, pouco coberto pelos lençois, não está imóvel, longe disso, está irrequieto e provocador de gemidos, murmura violentos discursos pelo canto da boca praticamente cerrada numa espécie de reacção ao indesejado, como se temesse algo e não o podesse controlar.
Mário está no meio de um sonho, e durante todo esse tempo encontra-se numa realidade diferente, ao que parece um mundo fantasiado mas temido, um mundo em que encontra todos os seus medos e recorda as saudades mais frágeis e mortas, está num mundo com vida própria, que se incorpora e revela a cada desejo ou lembrança revelada pela mente.
Aos poucos qualquer pessoa que o ouvisse perceberia pelos seus relatos a situação em que se sonha:


É dia bem iluminado e encontra-se em casa, toda as paredes têm cores variadas, ora vivas, ora doentias e deprimentes. Ele procura o casaco, um casaco específico. Chega ao quarto e para onde quer que dirija o olhar só vê casacos não pretendidos, todos eles se parecem mover como que suplicando para serem os escolhidos a vesti-lo, alguns falam com ele, desejam-lhe bom dia, dizem que ele está com bom aspecto, outros dançam ou movimentam-se pelo ar, há mesmo um casaco que tem a manga direita para cima, como se tentasse motivar a escolha com um dedo no ar, dedo esse inexistente. Todos procuram a sua distracção, todos o tentam fazer esquecer do seu objectivo. A busca é intensa, onde está o casaco castanho? Não o encontra, vai ter de sair sem casaco. Olha para o pulso e não tem relógio, em vez disso as horas estão-lhe cravadas na pele, os ponteiros em sintonia, entrelaçados um no outro apontam a direito as 12 horas, nem mais minuto, nem menos minuto.
Apressa-se e inicia corrida ao longo do apartamento, tem que sair rápidamente ou vai chegar atrasado. Aproxima-se da sala e procura a porta que dá para o exterior, mas esta não está no sítio em que sempre se encontra, mudou de sítio, Mário quase desespera. Faz depois, percurso de 360º com os olhos em toda a sua volta, a início não vê qualquer porta, até as que dão para o quarto e para a cozinha desapareceram, onde antes se encontravam restam apenas as marcas na parede. Motiva-se novamente a olhar todas as paredes com mais atenção, repara agora em portas nunca antes vistas, todas elas ligeiramente abertas e à espera de serem empurradas. Com o pé e numa forma de desespero abre-as e espreita o destino de cada uma. Todas elas são entradas para memórias e situações vividas anteriormente. Revê velhos amigos, situações embaraçosas na escola quando era muito miúdo, o dia em que entrou no curso, até os seus avôs maternos estão lá, numa porta bem antiga e quebrada em vários sítios. Sente-se consumido pela saudade e pelo desgosto, gostava muito de voltar a entrar por grande parte das portas e dava tudo para manter fechadas muitas outras. Sente-se então a desmaiar e as pernas recusam-se a ficar esticadas, tomba de joelhos e leva as mãos ao rosto em desespero, é então que sente junto à sua face um bafo quente, reconhece-o e tenta resistir à tentação da vista, sente o pelo de uma criatura tocar-lhe a cara e de repente uma lambidela humida na mão. Levanta a cabeça e olha o seu cão de infância, provavelmente tinha entrado por uma das primeiras portas, o coitado terá visto o dono esquecido há anos e não resistiu. Mário pega no osso que ele segura na boca e de imediato o cão responde com um abanar violento de cauda que quase o desequilibra, atira-o pelo ar fazendo pontaria a uma das portas e o cão de imediato volta ao local de onde veio, sem antes ladrar ao dono uma última vez em jeito de felicidade.
Recuperado levanta-se e repara numa porta à sua frente que não abre completamente, faz força e apoia todo o seu peso na porta de forma a deixá-la escancarada, mas não consegue, a porta não abre por nada. Decide então espreitar pelo canto entreaberto da mesma, do outro lado só vê escuro, não, está lá mais qualquer coisa! Destaca uma cara no meio da escuridão, não é familiar mas de alguma forma fá-lo sentir seguro.
Tenta ajeitar-se melhor para centrar o olhar na cara da rapariga, mas sente o seu pulso tremer, parece estar a ganhar vida própria, só passado breve desespero percebe que são as horas cravadas na pele que assinalam novamente as 12 em ponto, todo ele treme, como se fosse um despertador...

O despertador está a tocar, pensa Mário ainda a dormir, o despertador está a tocar, pensa Mário já meio acordado, toca mais uma vez e Mário finalmente acorda. Que sonho estranho. Lembra-se do cão, tem saudades daquele cão, as caras dos avós pairam na sua cabeça, há muito tempo que não se lembrava deles tão claramente.
Levanta-se finalmente e após rápido duche veste-se também à pressa, não pode chegar atrasado outra vez. Coloca o relógio no pulso e tenta-se lembrar onde pôs o casaco, na sala percorrida entretanto não está, no quarto também não, lembra-se finalmente que não chegou com ele a casa, deixou-o muito provavelmente em casa dos pais no dia anterior, falaram de tanta coisa ao jantar, acha que os avós foram também tema de recordações. Memórias bem vindas sem dúvida.

Sai de casa sem casaco, está calor na rua, também não é preciso outro. Começa a percorrer os 3 quarteirões que o levam ao emprego e de repente, na rua inundada por gente matinalmente resmungona, parece-lhe ver em duas faces passantes, a cara dos avós, jura aliás que os viu, eram mesmo eles. Olha para trás e vê os dois velhinhos que acabaram de passar por ele a afastarem-se no sentido contrário, segue-os à distância para não parecer um louco, com certeza eram só duas caras associadas ao sonho. Eles entraram num autocarro, ele entrou também. Sentaram-se os dois lá ao fundo, Mário ficou nos lugares junto à porta. Olhou-os, eram de facto muito parecidos, foi então que sentiu um bafo quente na perna, lembrou-se do seu cão e virou-se de imediato, era tal e qual o seu, mesma raça, mesma cor e o mesmo ar descontraído de quem está prestes a aprontar alguma.
Olhou várias vezes o cão e os dois passageiros sentados ao fundo, tudo tão estranhamente familiar, olhou então em frente pela porta meia aberta do autocarro e viu lá fora no meio da claridade o mesmo rosto tranquilizador do sonho, agora sim bem visível, bem bonito, bem ansioso de o conhecer.
Saiu do autocarro e foi ao seu encontro, deixando os outros três pedaços de sonho continuarem a viagem.

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