terça-feira, dezembro 04, 2007

Cérebro Ansioso

A ordem do cérebro foi no sentido de abrir os olhos, no entanto alguma parte da sua anatomia não estava a responder como era suposto. Os olhos permaneceram fechados, ordem após ordem permanecerem sempre fechados. A início não percebeu a razão para aquela desobediência física, sempre fora um atleta nato, nunca na sua vida tinha tido qualquer problema em termos físicos, nunca a sua condição física tinha representado qualquer tipo de obstáculo para qualquer que fosse o seu objectivo, mas ali estava ele, deitado numa qualquer espécie de superfície sem qualquer tipo de controlo físico sobre o seu corpo. Não sabia sequer se estaria realmente deitado, julgava que estava, confiava nos seus instintos que de forma mais ou menos óbvia o levavam a acreditar nisso. Não se conseguia também aperceber se estaria estendido sobre superfície confortável ou rija, não sentia as costas, não sentia o material que lhe roçava nas costelas, parecia-lhe que apenas o cérebro estava vivo, não se conseguia mexer, não conseguia transformar em prática qualquer movimento teorizado pelo cérebro. Lembrou-se que só podia estar morto, fundamentou isso com algo que tinha lido há uns anos atrás, o cérebro poderia de facto continuar a ter actividade após a morte, pensava no entanto que essa actividade seria sempre apenas na ordem dos segundos, tinham falado sempre na ordem dos 7,8 segundos, nunca em longos minutos de consciência, mas ali estava ele, a formular pensamentos e ideias sem conseguir sentir um único membro. Quando finalmente abandonou as intenções fisiológicas e se centrou naquilo que se passava à sua volta, constatou que conseguia ouvir, conseguia pelo menos perceber aquilo que se dizia à sua volta, ou à volta do seu corpo pelo menos. Ouviu uma voz familiar e centrou-se nela tentando identificar a quem pertencia…

- Coitadinha da minha Margarida! Não sei se ela vai conseguir viver sem ele, amava-o perdidamente e ele amava-a a ela, via-se nos olhos dos dois, todos os dias se amavam.

Percebeu que a voz era de uma sua conhecida, uma senhora já de idade avançada que tinha por ele enorme carinho, era incapaz de confundir aquela forma sempre carinhosa de falar, a senhora Ana, mãe da sua devoção, tinha ido ao seu funeral. Continuou a centrar as suas atenções no que se passava fora do caixão e deixou para segundo plano o facto de nenhuma parte do seu corpo atender a ordens do seu cérebro, ansiava por ouvir uma última vez a voz de Margarida, teria ela ido à sua despedida? Será que as forças lhe tinham faltado? Não a culparia por isso, imaginou-se no lugar dela e pensou que se fosse ele provavelmente não teria coragem.

- A margarida já chegou?

Ouviu alguém perguntar próximo de si.

- Não ainda não, o João estava com ela, disse-me que está difícil ela vir cá, não sai da cama a pequena, acho que isto tudo foi forte demais para ela. Dizem que ela o deixou sair de casa aborrecido com qualquer coisa. Tinham tido uma pequena discussão qualquer sem importância, mas ela não se quer desculpar por isso, acha que foi tudo culpa dela, diz que se ele não estivesse chateado não teria chocado com o outro carro…

Ele não estranhou o que ouviu, sempre soube que Margarida se preocupava demais com assuntos insignificantes, imaginava o que aquilo seria para ela, a forma como se culparia mesmo sabendo que o acidente nunca teria sido originado por qualquer discussão por mais grave que esta fosse. Lembrou-se do acidente, recordou que lhe tinham embatido frontalmente, tudo tinha acontecido muito depressa, não tinha havido tempo para nada, nem para virar o volante, nem para carregar a fundo no travão, a colisão tinha sido inevitável desde o início, nem se chegou a aperceber como o outra viatura tinha galgado o separador da estrada e tinha vindo parar ao seu lado, provavelmente estaria bêbado ou adormecido o outro condutor. Agora Margarida culpava-se sem razão, tudo porque o último momento partilhado pelos dois tinha sido rico em provocações ligeiras e pobre em carícias, ele sabia que ela se culparia por aquilo até ao fim da sua vida, estava nos seus genes ser assim, culpar-se por tudo o que lhe acontecia de mal…Se ao menos pudesse falar com ela uma última vez, dir-lhe-ia que até nas derradeiras discussões a amou.

- Margarida! Estás bem filha? Queres que te deixemos uns momentos com ele?

Ele nunca chegou a ouvir qualquer resposta, teria sido dada com a cabeça, apenas sentiu Margarida perto de si uma derradeira vez, sentiu-a a pousar a cabeça no seu peito e pela última vez imaginou o remoinho no cabelo de Margarida pousado em si, enfeitando a sua pele, em jeitos denunciados de confissão amorosa. Sentiu os seus olhos grandes e verdes pousados na sua cara, olhando-o uma última vez. Por fim conseguiu ouvi-la numa última e generosa oportunidade e sentiu-a sair a correr da sala…

- Desculpa! Foi sem intenção…

Disse ela.

Instantes depois o seu cérebro morreu, entrando em sintonia com o resto do corpo.

Nota: “Biologicamente, a morte pode ocorrer para o todo, para parte do todo ou para ambos. Por exemplo, é possível para células individuais, ou mesmo órgãos morrerem, e ainda assim o organismo como um todo continuar a viver. No entanto e no caso do coração parar a sua actividade, o cérebro apenas se poderá manter vivo por um curto espaço de tempo.”

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