sábado, outubro 20, 2007

O miúdo e a adega

Estava escuro lá dentro. Ele olhou para o chão e não conseguiu avistar os pés, estendeu as mãos na frente da cara e agitou-as no ar, nem um dedo conseguiu ver, só se apercebeu que tinha mãos quando intencionalmente provocou o contacto da sua mão com o nariz.

Sentia-se o ar denso e um cheiro a mofo pairava no ar, as sujas partículas entrenhavam-se no seu nariz e provocavam uma corrente quase infinita de espirros rebeldes e abafados, mas que raio...nem um raio de luz?

Com dificuldade estendeu a mão para trás e agarrou na maçaneta da porta, voltou a abri-la e conseguiu pela primeira vez identificar 10 metros quadrados de adega à sua volta. Tentou mesmo arranjar qualquer coisa que mantivesse a porta aberta de forma a poder satisfazer o pedido do seu pai e levar uma garrafa de tinto daquele ano para a recheada mesa de refeição. De certeza que os convidados ficariam impressionados, um miúdo só com 9 anos entrar numa adega escura só para ir buscar o vinho ao seu pai, “aquilo sim era coragem”.


Com 9 anos tem-se medo de todo o tipo de coisas que não fazem mal a ninguém. O escuro é disso primeiro exemplo. É raro o rapaz daquela idade que não tem medo do preto numa divisão da casa, é normal que isso aconteça quando tudo aquilo em que se pensa (quando se tem aquela idade) são coisas que já passaram na televisão, ou em qualquer filme ou história de aventura e terror, ou porque os amigos relataram uma terrível história sobre o que acontece a rapazinhos quando ficam sozinhos em divisões sem luz, claro que é tudo mentira, mas também é claro que sem uma década de vida acredita-se sempre mais no terrível e fantástico do que no normal, é uma forma intuitivamente intencional de acreditar que tudo tem o seu mistério.


Voltando ao relato, concentrou-se então Jeremias (nome do rapaz de 9 anos), na procura de qualquer “mecanismo” que lhe permitisse deixar a porta aberta, de forma a reduzir o medo da situação e tornar tudo muito mais controlável. Procurou e olhou durante algum tempo à sua volta, mas pressionado pelo tempo que devia demorar a fazer o favor ao seu pai, acabou por não conseguir encontrar sequer um calhau que fixasse a maldita porta rangedora. Deixou-a por fim fechar-se e soube que tinha que se aventurar naquela espécie de mundo negro.


Com muita calma iniciou o seu percurso. Sabia que tinha que dar à volta de 30 passos até chegar ao depósito da colheita anual mais recente, e então, tentando manter a calma, deu primeiro um passo, depois outro e quando pensou estar relativamente perto dos mecanismos de colheita do vinho (que estavam normalmente colocados perto da porta), estendeu as mãos e agachou-se ligeiramente, tentando evitar assim alguma canelada indesejada. Passou desta forma o primeiro obstáculo e com o crescente entusiasmo cresceu também a imaginação. Agora, segundo a fantástica mente de um rapaz de 9 anos, teria também à sua frente a rainha das aranhas, um aracnídeo tão grande que comia todas as outras aranhas se estas estivessem num raio de 5 metros. Segundo o vizinho de baixo (de 14 anos), a rainha formava-se de patas espessas que pegariam facilmente em Jeremias e o levariam para o seu casulo rico em teias pegajosas e restos de anteriores vítimas.

O herói calculou que do seu lado direito, imaginada e encostada à parede, estaria uma arma invencível contra aranhas, que disparava uma mistura de insecticida e rede que a deixaria imóvel. Imaginado e feito, alcançou a arma, disparou 3 vezes em frente e ao terceiro disparo jurou ter ouvido o ginchar do insecto. Estava morta! Ah pois estava. Mesmo assim e para que não houvesse qualquer dúvida, Jeremias calçou as suas botas espicaçantes e marchou sobre a inimiga.


Tinha agora o caminho aberto até à ambiciada garrafa. Manteve as mãos a proteger as pernas e deu passadas largas no sentido do depósito de garrafas, reparou que estava na sua frente quando um dos seus pés bateu na madeira que o caracterizava. Depois de sentir essa mesma madeira nas mãos, tentou então perceber onde estaria uma garrafa, era uma pena o depósito estar meio vazio, tornava claramente a sua missão ainda mais difícil.

Imaginou precisar de um localizador especial e sacou-o da mala que entretanto já levava às costas. Ligou-o e de imediato com a ajuda do laser imitido, identificou na penúltima prateleira uma garrafa em perfeitas condições de ser servida. Alcançou-a, limpou-a e meteu-a debaixo do braço, já “só” faltava o caminho inverso.


Teria o caminho de volta exactamente o mesmo tamanho que o de ida se entretanto a adega não se tivesse multiplicado em espaço para o triplo do tamanho.


Triplo do tamanho e com lobos sobredotados pelo meio. Lobos que viam nele uma espécie de almoço raro e rico em proteínas. Foi então que o tecto da adega cedeu mais ou menos junto a si e um ser encantador desceu dos céus vindo-se colocar a seu lado. Saltou-lhe para as costas, pegou nas bombas que se encontravam perto da nuca e enquanto o bicho efectuou voo razante, Jeremias lançou-as para perto dos lobos que sucumbiram às impressionantes explosões. Perto da porta, abandonou as costas do ser e rebolou para junto da entrada, esticou o braço, alcançou a maçaneta e rodou-a abrindo em toda a sua frente um raio de luz que de imediato inundou a adega fulminando os restantes seres que entretanto se tinham aproximado de si.


Por fim saiu para o exterior, pegou na garrafa que levava debaixo do braço e preparou-se para ser recebido como um herói pelo pai e restantes convidados.

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