Vapor e Natalidade
Passei a noite nas urgências, um programa do qual não sentia saudades. Inalei soro em vapor até as mucosas escorrerem pelo nariz em forma de água e após duas horas de nevoeiro contínuo ao nível nasal, recuperei a respiração estável, interrompida apenas por ataques de tosse que pareciam querer provocar uma avalanche em que a cabeça era a bola de neve e as costas a colina a descer. Ao fim de uma meia dúzia de horas encontrava-me então finalmente próximo da normalidade em termos pulmonares e capaz de articular um discurso desde que este não fosse rico em palavras longas.
Escusado será dizer que tinha passado dois terços desta meia dúzia de horas, em salas de espera de um hospital que rebentava pelas costuras, onde vi todo o tipo de gente a chegar em alvoroço. Exigiam tratamentos imediatos de queimaduras de 1º ou 3º grau, ou de dores de cabeça que “não os deixavam dormir”, ou de cortes profundos em que já tinha sido perdido muito sangue. Uns exageravam outros desdramatizavam, todos procuravam auxílio e atenção.
Toda esta movimentação me recambiou para um sala secundária em que me colocaram então “excepcionalmente” a um canto, sentado numa cadeira, inclinando o nariz e a boca sobre o vapor. Terei ficado ali mais de uma hora, até que o barulho do expelir do fumo foi abafado pelos gritos de uma mulher à entrada do hospital. Consegui perceber que estava grávida e pronta a trazer o novo membro da família ao mundo. A princípio negaram-lhe o atendimento, disseram que não tinham unidade de partos no hospital, que não podiam trazer o bebé ao mundo naquele hospital. O marido então respondeu que o filho ou nascia numa marquesa, ou nascia na sala de espera e que dali não tirava a mulher, que a função dos médicos e dos enfermeiros era fazer a criança nascer e que “com certeza, alguém aqui já fez um parto!”. Por fim lá apareceu um médico mais sensato e a iminente mãe foi levada para a mesma sala em que me tinham a mim. O marido tanto dava graças aos céus pela amabilidade exigida que pouco se importou com a minha presença, nem sei ao certo se terá reparado em mim, era naturalmente mais evidente a cabeça do filho que parecia querer espreitar a sala antes de ser convidado, do que a minha, semi-escondida no meio do vapor.
Todo aquele processo de natalidade foi mais rápido do que eu poderia imaginar e ao fim de uma hora em que os gritos femininos tendiam a maximizar o volume possível de som na sala, já o bebé estava cá fora, retirado do interior da mãe como que denunciando a falta de espaço de que dispunha para esticar as pernas. Assim que chegou cá fora o novo habitante da Terra foi açoitado levemente e o seu primeiro choro invadiu de forma mágica a maternidade improvisada. Quando olhei à minha volta, os enfermeiros congratulavam-se uns aos outros, denunciando a provável falta de hábito em situações semelhantes.
Foi então que após percorrer vários braços médicos, o bebé foi finalmente colocado no leito formado pelos braços da desgastada mãe, e foi aí que pude ver a felicidade extrema nos olhos de uma pessoa. Aquela felicidade que todos nós lutamos por atingir, todo os dias da nossa vida.
1 Comments:
essa ideia está escrita na Bíblia, sabes? =)
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