sábado, novembro 17, 2007

Amores de Liceo ***

É fim da tarde em Barcelona. Vista de cima, a cidade encanta quem a olha. As impressionantes moradas esculpidas por Gaudi reflectem uma cor alaranjada e proporcionadora de ambiente extraordinariamente calmante. De toda a cidade, os prédios são mesmo os constituintes mais apaziguadores, as pessoas, essas, viajam à velocidade da luz, descrevendo nas ruas da cidade trajectórias irregulares e inéditas, pintando linhas numa espécie de quadro vivido de dinâmica caótica. As calçadas e o alcatrão inundam-se de gente apressada no seu iminente regresso a casa, todos parecem cansados e de pensamento centrado no momento em que serão recebidos pela família assim que se encontrarem na sua familiar morada. Os táxis parecem poucos para tanta clientela e os autocarros aguardam rios de gente que espera pacientemente pela sua vez de picar o bilhete, por fim lá o picam e procuram lugares para se sentarem, quando já não os há permanecem de pé, alguns encostam-se nas gentes que partilham o mesmo transporte e que por ocasional delicadeza não se importam de permitir tal confiança. O cansaço desculpa tudo, o cansaço vitima até habituais resmungões que por aquelas tardes se fazem acolhedores, o contrário também acontece e há gente calma e constante que revela agora rosto fechado, impenetrável e por vezes ameaçador. Há carros parados no meio da estrada, toques rodoviários de última hora obrigam a minutos valentes e longos de engarrafamentos, retardando vidas familiares, impedindo que miúdos se divirtam com os pais antes de jantar, destabilizando compromissos e jantares planeados com antecedência.

Observando toda a movimentação, Pedro decide ir de metro para o Hotel, prescindindo da extraordinária beleza citadina enriquecida pela luz tardia do sol, de forma a evitar prolongamentos indesejados em pernas já desesperadas por descanso. A estação está também ela lotada e barulhenta, invadida por murmúrios de línguas estrangeiras à cultura de Pedro e por ocasionais choros de bebés descontentes com a esperada hora de ponta. As línguas enrolam-se e desenrolam-se a uma velocidade desconcertante, as conversas misturam-se confundindo o ambiente e amigos despedem-se aceleradamente uns dos outros, deixando no ar palavras imperceptíveis e na pior das hipóteses simpáticas. Pedro lembra-se da música como trunfo para suavizar a situação, lança a mão no fundo da mala e encontra o tocador de melodias, desenrola-o e leva os auriculares aos ouvidos, carrega “Play” e deixa-se envolver. Aos poucos o ambiente vai entrando na música, vai evidenciando particularidades presentes no ritmo da mesma, deixa-se fazer de cenário para a melodia e ao fim de breves minutos, tudo parece fazer parte do mesmo ambiente. A música deixa de estar descoordenada com os acontecimentos e deixa de servir apenas como calmante do momento, faz agora parte daquela carruagem e tudo parece mover-se segundo os seus acordes, desde o abrir e fechar das portas até ao movimento acelerado das pernas dos passageiros. As estações vão-se seguindo e os olhos de Pedro contemplam centenas de rostos que vão e vêem, vão e vêem os passageiros sem qualquer ordem e aproveitando o ritmo do metro, enchendo espaços e lugares já bem ocupados por outros. O desespero pelo fim da viagem é agora praticamente desprezado pelo português, que ao som das guitarras lembra agora a sua família, lembra os momentos passados anteriormente ao som daquela mesma banda sonora, anseia por os repetir, anseia estar perto dos seus protagonistas, sonha voltar a ter o papel central da acção.

A certa altura e trazidos no ajuntamento de personagens que dá entrada na carruagem, 3 miúdos se destacam à vista de Pedro. Algo neles o faz identificar-se, o faz querer observar e estudar a situação em que se encontram. Centrando a acção neles, consegue distinguir duas raparigas e um rapaz, elas terão mais de uma dúzia de anos, talvez 14, ele é aparentemente mais novo, talvez uma dezena, talvez 11 anos. É também franzino o rapaz, possuidor de rosto malandro e cabelo modernamente penteado, juntado com gel à frente, tem uma t-shirt preta enfeitada com logótipos e frases identificadoras de uma qualquer banda espanhola. Olha de forma deslumbrada uma das duas que o acompanham, observa-a hipnotizante numa saia preta e branca e enfeitada por brincos largos e redondos, ela responde-lhe com sorrisos e com expressões francas de “derretimento” amoroso.

O metro abranda em aproximação à próxima estação. Nas paredes lá fora estão escritos identificadores de “Liceo”. Ele é apanhado meio de surpresa e em atrapalhados gestos despede-se da amiga e da rapariga retentora da sua admiração e sai para a estação. O metropolitano recomeça o seu andamento e ela, vendo o seu admirador afastar-se, corre para a janela e chama apaixonadamente pelo seu nome. Ele apercebe-se e ao olhar para dentro da carruagem encontra o olhar dela e sorri encantadamente, um sorriso de pura inocência e felicidade. A apaixonada cora e a amiga ri-se por ela, tal como toda a carruagem, tal como Pedro que procura uma interpretação para todo aquele momento.

Por fim apercebe-se, por um segundo, no metropolitano de Barcelona, ao fim do dia, o tempo parou e o mundo é perfeito.


*** Conto inteiramente baseado no post de mesmo nome do blog de Pedro Ribeiro (http://osdiasuteis.blogs.sapo.pt/).

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