segunda-feira, março 29, 2010

As palavras que lhe saem da boca.

Assim que as palavras saíram da sua boca e se fizeram ecoar pelo seco ar que enchia o Mercado central, não consegui encontrar em mim qualquer pedaço de felicidade ou traço possível de degostação.

- Eu não gosto de ti da mesma forma. Dessa forma...

Isto de amar é giro até que alguém se sinta miserável e deixe de conseguir encontrar reacção para palavras que a início até podiam parecer simples. O problema é quando uma frase ecoa na cabeça, para cá e para lá, para cá e para lá demasiadas vezes sem resposta. Achamos que o nosso conteúdo craniano está vazio e em completo contraste com o nosso coração. E a fragilidade torna-se demasiado próxima, torna-se uma espécie de vizinha que nos visita todos os dias sem ser convidada. Basta bater à porta e lá vamos nós, “Entre senhora Fragilidade, faça favor, deseja alguma coisa? Um chá? Um bolo?”. Posso dizer que pelo menos para mim, o controlo dos olhos não está em causa, nunca derramarei quaisquer lágrimas enquanto ela estiver por perto, enquanto continuar a ver o seu puro rosto mágico, esta beleza incondicional e por isso agora tão insuportável. No entanto por dentro, choro por todos os lados, o mais que posso para não correr riscos de lágrima. Estou de rastos de uma forma verdadeira, é como se os piores receios tivessem resolvido tornar-se parte da realidade. A fragilidade e o receio, tornam-se grandes amigas minhas. Ela diz:

- Podemos ser amigos. Gostava de ser tua amiga!

“Os amigos não são o mesmo que eu e tu”, é a primeira coisa em que penso, mas não digo, deixo-me ser miserável durante mais um tempo. Não perturbo a sua figura adorável e implacável. Prefiro morrer a dizer algo que a magoe. “Os amigos não são o mesmo que eu e tu” penso novamente, e faço um sorriso meio parvo meio verdadeiro que no entanto é honesto na sua incapacidade de expressar o que quer que seja. “Sou incapaz de ser teu amigo” quase que digo. Mas não sou capaz. Sou no fundo um cobarde, sempre fui. Se ela me toca parto-me em bocados. Por dentro claro, por fora não mostro as emoções, mantenho-me fiel à minha calma de mentiroso. Mas se ela diz que me ama, sou o ser mais realizado no mundo. Até por aqui se vê, a minha forma de realização não depende de mim.Se isto não é a definição de cobarde não sei o que será.

Com o mundo para lhe dizer, não consigo sequer abrir a boca. Confesso que a olho com algum despero. Ela não o percebe, porque está demasiado preocupada em fazer entender que não me quer magoar. Realmente não me quererá magoar porque não lhe convém, se lhe conviesse fazia-o sem pensar duas vezes, mas como quer ser minha amiga, ou quer que eu seja amiga dela – assim é que é certo – faz entender por olhares falsamente enternecidos que se preocupa mesmo comigo, ou qualquer sentimento que venha de mim.

- Por favor. Fala comigo! Eu não te queria magoar.

Resolvo ser honesto, possivelmente na altura mais imprópria da minha vida para revelar essa honestidade:

- Demorei tanto tempo a ganhar coragem... Para te dizer... Isto que disse. Que te amo. Acho que sei desde que te vi a primeira vez...

Assim que o olhar dela se põe novamente sobre mim, apercebo-me do tamanho arrependimento com que esta fala me assalta. Ser romântico numa altura destas é a coisa mais estúpida à face da terra. E se há uma pessoa que sabe medir o grau de estupidez de qualquer coisa sou eu. Passo a minha vida rodeado delas. Ser vendedor ambulante tem destas coisas. Mesmo que o se venda sejam palavras, folhas e folhas inteiras de palavras, que quanto mais agarradas umas às outras, menos significado parecem ter. Vendo livros inteiros de palavras sem qualquer significado, a não ser aquele que cada leitor lhes quer dar. E só para gente estúpida é que as palavras têm significado. Se não concordam olhem para mim agora. Que rico significado é este das palavras, quando conduz um homem solidário à tamanha solidão. Se há uma coisa que um homem só não precisa, é de ter por companhia a total ausência de alguém. Por isso digo que sou estupido. Sou cobarde e sou estúpido. Não a mereço.

- Eu sei. Sempre soube. Não sei porque demoraste tempo a dizê-lo. Quando me disseste para vir ter hoje cedo ao parque, eu percebi logo que ias finalmente confessar-te. Acho que da próxima vez, não devias demorar tanto. Devias dizê-lo mal tivesses a certeza.

As palavras que lhe saem da boca, a uma velocidade demasiado acelerada para significarem alguma coisa, são fulminantes que nem raios apontados ao centro do alma. No fundo a única coisa que ela tem para me dizer, é que sou um pastelão. Lembram-se do que é ser pastelão? No meu tempo de criança, pastelão era aquele que demorava mais tempo a comer uma refeição. O último a acabar. Aquele por quem todos tinham que esperar, ou aquele que era abandonado na mesa, enquanto os outros se iam adiantando na brincadeira. No fundo era o que ela me chamava agora, um pastelão de sentimentos, como se eu mastigasse demasiado a paixão, ou como se ingerisse um bocadinho de atracção de cada vez. E agora, tal como o miúdo dos meus tempos de criança, também eu era abandonado nos meus sentimentos, enquanto ela se adiantava em amar outra pessoa.

Podia-lhe dizer que nunca tinha tido a certeza. Que quando se ama alguém, se fica tão viciado nos seus defeitos que às tantas já nem se consegue ter certezas. Que só quando se acorda, vive e sonha com essa pessoa na cabeça, nos apercebemos finalmente que é amor que ali está, e não outra fixação qualquer. E é nessa altura que adoecemos gravemente.

- Não teria feito diferença...Se te tivesse dito mais cedo.

- Tinha. Podias partir para outra mais rapidamente.

- Quem te diz que eu vou partir para outra?

- Porque temos de ser amigos. Só.

- Ser amigo de uma pessoa, já não é o que era antes.

- Não digas isso.

- Porquê? Os amigos impedem-se uns aos outros de dizer o que lhes vai na cabeça?

- Só quando o que se diz não faz sentido.

- Para mim faz tudo o sentido.

- Não gosto de ti assim.

- Não vou pedir desculpa.

- Não tens que pedir.

- Então que queres tu de mim?

- Quero ser tua amiga.

- Não sei se vai dar.

- Oh...

- Acho que preciso de não te ver.

- Se é isso que sentes...

- Tu já sabes o que eu sinto. Acabei de o dizer. Apesar de achares que o devia ter dito mais cedo.

- Gostava de continuar a fazer contigo as mesmas coisas que temos feito. És o meu melhor amigo.

- Eu não disse!? Ser amigo já não é o mesmo que era antes.

- Isso eu não sei. Nunca vivi noutra geração.

“Se calhar é esse o teu problema”, pensei mas não disse. “Se calhar é esse o meu problema também”. Ocorreu-me que gostava de ter vivido na geração dos meus pais, ou mesmo no tempo dos mes avôs. Aposto que nesses tempos amava-se mais da boca para fora que agora. Aposto que não havia amigos para viver a vida toda, e amantes para estar de vez em quando. E não me digam que agora se ama com mais intensidade. Os meus avós tiveram casados mais de cinquenta anos. Cinquenta anos são a prova de amor mais intensa que me podem mostrar. Quem é que vive cinquenta anos de amor nos tempos de hoje? Só os amigos. Os verdadeiros. Aqueles que nem precisam de se reconhecer como tal. Os que basta olhar para reconhecer. Os meus avós foram amigos a vida toda.

Não lhe disse que não a queria ver mais. Não lhe disse que não ia ser seu amigo. Mas acho que de alguma forma percebeu. O beijo na face que me deu, antes de me abandonar no seu jeito único de ser de outro mundo, para mim terá significado tudo, para ela pouco mais que nada. No último momento em que lhe vi as estimas, confesso que temi por toda a vida dela.

- Espera que tenha muitos melhores amigos. – Cheguei a dizer em voz baixa, em jeito de segredo.

Ontem almocei com a minha avó. O meu avô de alguma forma esteve sempre presente. Homem sortudo, o meu avô. Que homem sortudo.

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