sexta-feira, dezembro 28, 2007

Rapaz dos Jornais

Todos estavam naquela cidade por obrigatoriedade, alguns ficaram lá por amor, outros por não terem opção, mas mesmo aqueles que tinham opção foram feitos prisioneiros de situação e na altura em que a guerra chegou à cidade já era demasiado tarde para pensar em evasões heróicas. Permaneceram assim todos nas suas casas, falsamente confortados com promessas por parte das autoridades que nada lhes acontecia, que a situação estava controlada e que os rebentamentos que se faziam ouvir todas as noites estavam controlados e nunca chegariam próximo das casas destes patriotas. Esta segurança era a última certeza que os habitantes da ferida cidade tinham, procuravam sempre formas alternativas de se tornarem mais protegidos do exterior, procuravam pelas próprias mãos por à prova os vários mecanismos de segurança como forma de contribuir para a evolução dos vários mecanismos. Todo este estudo e dedicação a novos métodos de protecção a guerras alheias, necessitava claramente de ser sustentado e informado decentemente, e aqui começa a história digna de registo:

Nas situações dramáticas em que se encontrava a cidade era natural que muita gente tivesse prescindido do trabalho como forma de se manter junto da família. Desde fábricas que fechavam temporariamente, a centros comerciais encerrados por falta de funcionários, toda a cidade parecia ter sido abandonada no que a postos de trabalho dizia respeito, no entanto havia algumas excepções, as compras eram feitas em mercearias ou praças e o jornal era sempre entregue. Todas as manhãs, em todas as casas habitadas, lá se encontrava junto de cada porta, um manuscrito fomentador de esperança. Todos estes jornais que em altura normal seriam entregues por vários rapazes em bicicletas, eram naquela altura distribuídos apenas por um rapaz de tenra idade (devia ter à volta de uns 23 ou 24 anos) que demorava uma manhã inteira a levar a bom porto a sua função, mas que nunca falhava uma única porta, fizesse chuva ou fizesse sol.

Nunca ninguém se lembra de ter falado directamente com o rapaz dos jornais, ninguém se lembrava do nome dele, todos lhe atribuíam no entanto papel de fulcral importância em termos de segurança familiar, era ele que possibilitava o acesso às tácticas dos invasores, era ele que informava de todas as mudanças nas tácticas dos atacantes ou defensores, era ele que mantinha o mínimo sinal de normalidade naquela cidade, nem que esse sinal fosse dado todos os dias por uma campainha aguda e o barulho das correntes a passar à frente das habitações. De tudo aquilo que os habitantes conheciam na cidade antes de esta ser invadida pelas armas, aquele tocar de campainha de bicicleta era o único ritual que sobrevivia, servindo ao mesmo tempo como equilibrador mental e factor de resistência de toda uma população ferida.

Era comum ver homens a espreitarem por janelas refundidas das casas logo cedo no dia, tentavam todos vislumbrar o rapaz dos jornais. O acto do lançamento do jornal para o alpendre da entrada era antecipado por muitos como se tratasse de uma razão de vida, era para muitos o momento mais importante do dia, enquanto não vissem o jornal na sua porta, não descansavam, enquanto não ouvisse o tilintar da campainha temiam pela família que tentavam proteger.

Os miúdos também o escolhiam como super-herói, muito por ouvirem os pais a falarem do seu tranquilizador diário e porque à mesa não se falava de outra coisa, e o facto de se aperceberem que os pais admiravam um simples rapaz na sua bicicleta, fazia com que se identificasse e quisessem ser como ele. Os mais astutos e desavergonhados esperavam mesmo pela sua chegada e depois seguiam-no com os olhos e às vezes com as pernas, gritavam pelos vários nomes que lhe eram postos e corriam a seu lado durante alguns segundos sem nunca se atreverem a olharem-no muito tempo, alguns diziam que ele sorria, outros diziam que não era humano, outros descreviam-no mesmo em traços e contornos sobredotados.

Esta simbiose de veneração e segurança manteve-se durante longos e longos meses de sobrevivência atípica à guerra, mantendo a cidade viva e continuamente em alerta.

Certo dia o rapaz dos jornais não apareceu. Todos esperaram pacientemente junto às janelas e às portas das suas casas. E ao final do dia tiveram uma certeza, a guerra partira. Assim como o rapaz dos jornais.

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