segunda-feira, março 29, 2010

As palavras que lhe saem da boca.

Assim que as palavras saíram da sua boca e se fizeram ecoar pelo seco ar que enchia o Mercado central, não consegui encontrar em mim qualquer pedaço de felicidade ou traço possível de degostação.

- Eu não gosto de ti da mesma forma. Dessa forma...

Isto de amar é giro até que alguém se sinta miserável e deixe de conseguir encontrar reacção para palavras que a início até podiam parecer simples. O problema é quando uma frase ecoa na cabeça, para cá e para lá, para cá e para lá demasiadas vezes sem resposta. Achamos que o nosso conteúdo craniano está vazio e em completo contraste com o nosso coração. E a fragilidade torna-se demasiado próxima, torna-se uma espécie de vizinha que nos visita todos os dias sem ser convidada. Basta bater à porta e lá vamos nós, “Entre senhora Fragilidade, faça favor, deseja alguma coisa? Um chá? Um bolo?”. Posso dizer que pelo menos para mim, o controlo dos olhos não está em causa, nunca derramarei quaisquer lágrimas enquanto ela estiver por perto, enquanto continuar a ver o seu puro rosto mágico, esta beleza incondicional e por isso agora tão insuportável. No entanto por dentro, choro por todos os lados, o mais que posso para não correr riscos de lágrima. Estou de rastos de uma forma verdadeira, é como se os piores receios tivessem resolvido tornar-se parte da realidade. A fragilidade e o receio, tornam-se grandes amigas minhas. Ela diz:

- Podemos ser amigos. Gostava de ser tua amiga!

“Os amigos não são o mesmo que eu e tu”, é a primeira coisa em que penso, mas não digo, deixo-me ser miserável durante mais um tempo. Não perturbo a sua figura adorável e implacável. Prefiro morrer a dizer algo que a magoe. “Os amigos não são o mesmo que eu e tu” penso novamente, e faço um sorriso meio parvo meio verdadeiro que no entanto é honesto na sua incapacidade de expressar o que quer que seja. “Sou incapaz de ser teu amigo” quase que digo. Mas não sou capaz. Sou no fundo um cobarde, sempre fui. Se ela me toca parto-me em bocados. Por dentro claro, por fora não mostro as emoções, mantenho-me fiel à minha calma de mentiroso. Mas se ela diz que me ama, sou o ser mais realizado no mundo. Até por aqui se vê, a minha forma de realização não depende de mim.Se isto não é a definição de cobarde não sei o que será.

Com o mundo para lhe dizer, não consigo sequer abrir a boca. Confesso que a olho com algum despero. Ela não o percebe, porque está demasiado preocupada em fazer entender que não me quer magoar. Realmente não me quererá magoar porque não lhe convém, se lhe conviesse fazia-o sem pensar duas vezes, mas como quer ser minha amiga, ou quer que eu seja amiga dela – assim é que é certo – faz entender por olhares falsamente enternecidos que se preocupa mesmo comigo, ou qualquer sentimento que venha de mim.

- Por favor. Fala comigo! Eu não te queria magoar.

Resolvo ser honesto, possivelmente na altura mais imprópria da minha vida para revelar essa honestidade:

- Demorei tanto tempo a ganhar coragem... Para te dizer... Isto que disse. Que te amo. Acho que sei desde que te vi a primeira vez...

Assim que o olhar dela se põe novamente sobre mim, apercebo-me do tamanho arrependimento com que esta fala me assalta. Ser romântico numa altura destas é a coisa mais estúpida à face da terra. E se há uma pessoa que sabe medir o grau de estupidez de qualquer coisa sou eu. Passo a minha vida rodeado delas. Ser vendedor ambulante tem destas coisas. Mesmo que o se venda sejam palavras, folhas e folhas inteiras de palavras, que quanto mais agarradas umas às outras, menos significado parecem ter. Vendo livros inteiros de palavras sem qualquer significado, a não ser aquele que cada leitor lhes quer dar. E só para gente estúpida é que as palavras têm significado. Se não concordam olhem para mim agora. Que rico significado é este das palavras, quando conduz um homem solidário à tamanha solidão. Se há uma coisa que um homem só não precisa, é de ter por companhia a total ausência de alguém. Por isso digo que sou estupido. Sou cobarde e sou estúpido. Não a mereço.

- Eu sei. Sempre soube. Não sei porque demoraste tempo a dizê-lo. Quando me disseste para vir ter hoje cedo ao parque, eu percebi logo que ias finalmente confessar-te. Acho que da próxima vez, não devias demorar tanto. Devias dizê-lo mal tivesses a certeza.

As palavras que lhe saem da boca, a uma velocidade demasiado acelerada para significarem alguma coisa, são fulminantes que nem raios apontados ao centro do alma. No fundo a única coisa que ela tem para me dizer, é que sou um pastelão. Lembram-se do que é ser pastelão? No meu tempo de criança, pastelão era aquele que demorava mais tempo a comer uma refeição. O último a acabar. Aquele por quem todos tinham que esperar, ou aquele que era abandonado na mesa, enquanto os outros se iam adiantando na brincadeira. No fundo era o que ela me chamava agora, um pastelão de sentimentos, como se eu mastigasse demasiado a paixão, ou como se ingerisse um bocadinho de atracção de cada vez. E agora, tal como o miúdo dos meus tempos de criança, também eu era abandonado nos meus sentimentos, enquanto ela se adiantava em amar outra pessoa.

Podia-lhe dizer que nunca tinha tido a certeza. Que quando se ama alguém, se fica tão viciado nos seus defeitos que às tantas já nem se consegue ter certezas. Que só quando se acorda, vive e sonha com essa pessoa na cabeça, nos apercebemos finalmente que é amor que ali está, e não outra fixação qualquer. E é nessa altura que adoecemos gravemente.

- Não teria feito diferença...Se te tivesse dito mais cedo.

- Tinha. Podias partir para outra mais rapidamente.

- Quem te diz que eu vou partir para outra?

- Porque temos de ser amigos. Só.

- Ser amigo de uma pessoa, já não é o que era antes.

- Não digas isso.

- Porquê? Os amigos impedem-se uns aos outros de dizer o que lhes vai na cabeça?

- Só quando o que se diz não faz sentido.

- Para mim faz tudo o sentido.

- Não gosto de ti assim.

- Não vou pedir desculpa.

- Não tens que pedir.

- Então que queres tu de mim?

- Quero ser tua amiga.

- Não sei se vai dar.

- Oh...

- Acho que preciso de não te ver.

- Se é isso que sentes...

- Tu já sabes o que eu sinto. Acabei de o dizer. Apesar de achares que o devia ter dito mais cedo.

- Gostava de continuar a fazer contigo as mesmas coisas que temos feito. És o meu melhor amigo.

- Eu não disse!? Ser amigo já não é o mesmo que era antes.

- Isso eu não sei. Nunca vivi noutra geração.

“Se calhar é esse o teu problema”, pensei mas não disse. “Se calhar é esse o meu problema também”. Ocorreu-me que gostava de ter vivido na geração dos meus pais, ou mesmo no tempo dos mes avôs. Aposto que nesses tempos amava-se mais da boca para fora que agora. Aposto que não havia amigos para viver a vida toda, e amantes para estar de vez em quando. E não me digam que agora se ama com mais intensidade. Os meus avós tiveram casados mais de cinquenta anos. Cinquenta anos são a prova de amor mais intensa que me podem mostrar. Quem é que vive cinquenta anos de amor nos tempos de hoje? Só os amigos. Os verdadeiros. Aqueles que nem precisam de se reconhecer como tal. Os que basta olhar para reconhecer. Os meus avós foram amigos a vida toda.

Não lhe disse que não a queria ver mais. Não lhe disse que não ia ser seu amigo. Mas acho que de alguma forma percebeu. O beijo na face que me deu, antes de me abandonar no seu jeito único de ser de outro mundo, para mim terá significado tudo, para ela pouco mais que nada. No último momento em que lhe vi as estimas, confesso que temi por toda a vida dela.

- Espera que tenha muitos melhores amigos. – Cheguei a dizer em voz baixa, em jeito de segredo.

Ontem almocei com a minha avó. O meu avô de alguma forma esteve sempre presente. Homem sortudo, o meu avô. Que homem sortudo.

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domingo, janeiro 06, 2008

Semelhanças

Ernesto sempre foi homem de estatura pequena e de ideias grandes. Nasceu na Guarda no longínquo ano de 1902, com três quilos certos. Três quilos divididos mais pela cabeça do que pela estatura. Sempre foi pequeno e nunca teve reais problemas com essa condição humana.

Fez-se homem muito cedo na vida, como era hábito dos tempos em que viveu. Começou a trabalhar com 15 anos na empresa do pai e quanto a isso nunca se queixou. Há inclusive relatos que identificam essa época como uma experiência muito positiva para Ernesto, que é acusado de ter gostado de facto das funções que desempenhou naquele local de trabalho. Foi para a tropa uns anos depois, quando já atingira a maturidade dos adultos. Cumpriu 4 anos de serviço militar durante os quais nunca deixou de “fisgar” a rapariga dos seus olhos que deixara na longínqua Terra. Apesar da distância, a relação evoluiu sempre por cartas enviadas todas as semanas para a residência da “Menina Albuquerque”. A início contra a vontade dos pais da moça, até se tornar um hábito por toda a terra falar-se de Ernesto como um exemplo de empenho e coragem militar. Ai então, os Albuquerque começaram a achar tudo aquilo fenómeno apreciável e digno de casamento. Mal abandonara por isso a tropa e já se encontrava casado com ela.

Este facto é então o primeiro a indiciar que Ernesto teve sempre para a sua vida planos bem definidos e nunca os deixou cair por terra, insistindo nos seus princípios com uma persistência heróica e uma dedicação e virtuosidade extrema.


Raquel sempre foi uma rapariga de estatura pequena e de intensa actividade cerebral. Nasceu em Lisboa no recente ano de 1985. Tinha três quilos certos quando se exteriorizou e apesar de sempre ter tido um crescimento pouco extenso, nunca se preocupou com a sua altura. Se era certo que ser baixa lhe trazia algumas desvantagens, também era certo que uma vez por outra isso seria factor vantajoso. Dava-lhe aparência frágil e isso agradava-lhe bastante, funcionava como uma espécie de máscara que mantinha constantemente posta, cobrindo a sua fortaleza mental e emocional com traços físicos frágeis e apetecíveis.

Foi para a faculdade muito cedo na vida, como começou a ser hábito por volta daquela altura. Começou a formar-se como historiadora quando ainda tinha a modesta idade de 17 anos, idade que escondia uma maturidade própria de adultos. Desde que se iniciou nestes estudos e até ao ano de 2007, ano em que os terminou, nunca ninguém a ouviu por uma vez que fosse, queixar-se quanto ao curso que frequentou. Sabia-se que não era fácil, ouviam-se relatos de colegas descrevendo situações pouco agradáveis para os alunos, mas da boca dela nunca saiu nada a não ser boas notas e aprovações altamente qualificadas.

Diz quem a conhece, que Raquel sempre se caracterizou por saber bem aquilo que quer para a sua vida e que qualquer que seja o contratempo, nunca é factor suficiente para que ela se deixe desequilibrar nas suas intenções, insistindo de forma persistente e empenhando dedicação e virtude em moldes dignos de heróis venerados.


Ernesto morreu em 1985, precisamente um dia antes de Raquel nascer.

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quarta-feira, janeiro 02, 2008

Vapor e Natalidade

Não adoecia há um ano, lembro-me perfeitamente desse facto, provavelmente até me tinha gabado disso a alguém, antes de me aperceber que podia dar azar comemorar e dar a conhecer essa condição ao mundo. Já devia saber que um ano era muito tempo sem adoecer, já não era natural tanto tempo são de saúde, abusei da sorte e terei andando ao ar livre menos agasalhado da cintura para cima do que o recomendável para as condições atmosféricas, terei pensado provavelmente que nunca mais algum vírus entraria por mim a dentro. Teoria pensada e imediatamente invalidada, começando por uma pequena dor de garganta ao fim da noite, uma impressão na laringe, algo incomodativo ao engolir. Passou para uma inflamação séria na garganta mal acordei na manhã seguinte, e num curto prazo de 2 dias evoluiu para uma virose forte e condicionadora extrema de uma respiração eficaz. Dificuldade ao respirar, tosse que fazia lembrar uma criatura de tempos assustadores e arrepios pela espinha a deixarem perceber que a temperatura no corpo já tinha subido mais do que seria desejável. Não demorou muito tempo a atingir um ponto de saturação e incapacidade física para a vida. Levei-me então ao hospital, aliás, ter-me-ão levado ao hospital, de ambulância e tudo tal era a dificuldade a inspirar e expirar. Tinha demorado um ano, o vírus tinha sido tardio, mas agora vingava-se com uma eficácia desconfortante.

Passei a noite nas urgências, um programa do qual não sentia saudades. Inalei soro em vapor até as mucosas escorrerem pelo nariz em forma de água e após duas horas de nevoeiro contínuo ao nível nasal, recuperei a respiração estável, interrompida apenas por ataques de tosse que pareciam querer provocar uma avalanche em que a cabeça era a bola de neve e as costas a colina a descer. Ao fim de uma meia dúzia de horas encontrava-me então finalmente próximo da normalidade em termos pulmonares e capaz de articular um discurso desde que este não fosse rico em palavras longas.

Escusado será dizer que tinha passado dois terços desta meia dúzia de horas, em salas de espera de um hospital que rebentava pelas costuras, onde vi todo o tipo de gente a chegar em alvoroço. Exigiam tratamentos imediatos de queimaduras de 1º ou 3º grau, ou de dores de cabeça que “não os deixavam dormir”, ou de cortes profundos em que já tinha sido perdido muito sangue. Uns exageravam outros desdramatizavam, todos procuravam auxílio e atenção.

Toda esta movimentação me recambiou para um sala secundária em que me colocaram então “excepcionalmente” a um canto, sentado numa cadeira, inclinando o nariz e a boca sobre o vapor. Terei ficado ali mais de uma hora, até que o barulho do expelir do fumo foi abafado pelos gritos de uma mulher à entrada do hospital. Consegui perceber que estava grávida e pronta a trazer o novo membro da família ao mundo. A princípio negaram-lhe o atendimento, disseram que não tinham unidade de partos no hospital, que não podiam trazer o bebé ao mundo naquele hospital. O marido então respondeu que o filho ou nascia numa marquesa, ou nascia na sala de espera e que dali não tirava a mulher, que a função dos médicos e dos enfermeiros era fazer a criança nascer e que “com certeza, alguém aqui já fez um parto!”. Por fim lá apareceu um médico mais sensato e a iminente mãe foi levada para a mesma sala em que me tinham a mim. O marido tanto dava graças aos céus pela amabilidade exigida que pouco se importou com a minha presença, nem sei ao certo se terá reparado em mim, era naturalmente mais evidente a cabeça do filho que parecia querer espreitar a sala antes de ser convidado, do que a minha, semi-escondida no meio do vapor.

Todo aquele processo de natalidade foi mais rápido do que eu poderia imaginar e ao fim de uma hora em que os gritos femininos tendiam a maximizar o volume possível de som na sala, já o bebé estava cá fora, retirado do interior da mãe como que denunciando a falta de espaço de que dispunha para esticar as pernas. Assim que chegou cá fora o novo habitante da Terra foi açoitado levemente e o seu primeiro choro invadiu de forma mágica a maternidade improvisada. Quando olhei à minha volta, os enfermeiros congratulavam-se uns aos outros, denunciando a provável falta de hábito em situações semelhantes.

Foi então que após percorrer vários braços médicos, o bebé foi finalmente colocado no leito formado pelos braços da desgastada mãe, e foi aí que pude ver a felicidade extrema nos olhos de uma pessoa. Aquela felicidade que todos nós lutamos por atingir, todo os dias da nossa vida.

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sexta-feira, dezembro 28, 2007

Rapaz dos Jornais

Todos estavam naquela cidade por obrigatoriedade, alguns ficaram lá por amor, outros por não terem opção, mas mesmo aqueles que tinham opção foram feitos prisioneiros de situação e na altura em que a guerra chegou à cidade já era demasiado tarde para pensar em evasões heróicas. Permaneceram assim todos nas suas casas, falsamente confortados com promessas por parte das autoridades que nada lhes acontecia, que a situação estava controlada e que os rebentamentos que se faziam ouvir todas as noites estavam controlados e nunca chegariam próximo das casas destes patriotas. Esta segurança era a última certeza que os habitantes da ferida cidade tinham, procuravam sempre formas alternativas de se tornarem mais protegidos do exterior, procuravam pelas próprias mãos por à prova os vários mecanismos de segurança como forma de contribuir para a evolução dos vários mecanismos. Todo este estudo e dedicação a novos métodos de protecção a guerras alheias, necessitava claramente de ser sustentado e informado decentemente, e aqui começa a história digna de registo:

Nas situações dramáticas em que se encontrava a cidade era natural que muita gente tivesse prescindido do trabalho como forma de se manter junto da família. Desde fábricas que fechavam temporariamente, a centros comerciais encerrados por falta de funcionários, toda a cidade parecia ter sido abandonada no que a postos de trabalho dizia respeito, no entanto havia algumas excepções, as compras eram feitas em mercearias ou praças e o jornal era sempre entregue. Todas as manhãs, em todas as casas habitadas, lá se encontrava junto de cada porta, um manuscrito fomentador de esperança. Todos estes jornais que em altura normal seriam entregues por vários rapazes em bicicletas, eram naquela altura distribuídos apenas por um rapaz de tenra idade (devia ter à volta de uns 23 ou 24 anos) que demorava uma manhã inteira a levar a bom porto a sua função, mas que nunca falhava uma única porta, fizesse chuva ou fizesse sol.

Nunca ninguém se lembra de ter falado directamente com o rapaz dos jornais, ninguém se lembrava do nome dele, todos lhe atribuíam no entanto papel de fulcral importância em termos de segurança familiar, era ele que possibilitava o acesso às tácticas dos invasores, era ele que informava de todas as mudanças nas tácticas dos atacantes ou defensores, era ele que mantinha o mínimo sinal de normalidade naquela cidade, nem que esse sinal fosse dado todos os dias por uma campainha aguda e o barulho das correntes a passar à frente das habitações. De tudo aquilo que os habitantes conheciam na cidade antes de esta ser invadida pelas armas, aquele tocar de campainha de bicicleta era o único ritual que sobrevivia, servindo ao mesmo tempo como equilibrador mental e factor de resistência de toda uma população ferida.

Era comum ver homens a espreitarem por janelas refundidas das casas logo cedo no dia, tentavam todos vislumbrar o rapaz dos jornais. O acto do lançamento do jornal para o alpendre da entrada era antecipado por muitos como se tratasse de uma razão de vida, era para muitos o momento mais importante do dia, enquanto não vissem o jornal na sua porta, não descansavam, enquanto não ouvisse o tilintar da campainha temiam pela família que tentavam proteger.

Os miúdos também o escolhiam como super-herói, muito por ouvirem os pais a falarem do seu tranquilizador diário e porque à mesa não se falava de outra coisa, e o facto de se aperceberem que os pais admiravam um simples rapaz na sua bicicleta, fazia com que se identificasse e quisessem ser como ele. Os mais astutos e desavergonhados esperavam mesmo pela sua chegada e depois seguiam-no com os olhos e às vezes com as pernas, gritavam pelos vários nomes que lhe eram postos e corriam a seu lado durante alguns segundos sem nunca se atreverem a olharem-no muito tempo, alguns diziam que ele sorria, outros diziam que não era humano, outros descreviam-no mesmo em traços e contornos sobredotados.

Esta simbiose de veneração e segurança manteve-se durante longos e longos meses de sobrevivência atípica à guerra, mantendo a cidade viva e continuamente em alerta.

Certo dia o rapaz dos jornais não apareceu. Todos esperaram pacientemente junto às janelas e às portas das suas casas. E ao final do dia tiveram uma certeza, a guerra partira. Assim como o rapaz dos jornais.

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domingo, dezembro 09, 2007

O Rei do Recreio

Estavam todos sentados e irrequietos nos seus bancos, esperavam, ansiavam pelo toque da habitual campainha, o toque da liberdade que os fazia levantarem-se em algazarra incontrolável e dirigirem-se de forma urgente e dinâmica para o pátio das centenas de histórias. Todos muito pequenos e em frenética correria pelos corredores do infantário, esquivando-se dos funcionários que tentavam limpar os corredores outrora brilhantes e calmos. Todos em delirantes velocidades, fazendo esvoaçar as folhas caídas pelo Outono que povoavam o recreio. Perto da porta que lhe dava acesso, formava-se mesmo regularmente um agregado especialmente intenso de folhas e todos os dias o primeiro a passar por elas era considerado e coroado como uma espécie de rei, transformando-se ele próprio numa espécie de árvore intensamente revestida pelas folhas caídas das suas colegas de espécie. O pátio de todas as brincadeiras e espaço sonhado pelos pequenos alunos durante todas as horas que estes passavam de facto a instruir-se no interior das salas, era constituído por uma arena em que o chão era feito de areia de praia e os pequenos muros de tijolo vermelho e desgastado (servindo esse muro, como rampa de lançamento para foguetões ou como prancha para concursos de mergulhos), por um percurso delimitado em torno dessa mesma arena e por uma árvore de enormes dimensões mesmo a meio desse percurso. Era comum que ao longo de todo o percurso em volta da arena se observasse constantemente corridas frenéticas que tinham como intervenientes os vários miúdos “supersónicos” que transformavam o trajecto numa pista de carros ou motas. Essas corridas eram normalmente interrompidas por quedas a meio do percurso, era o preço a pagar pelo facto da pista apenas ser delimitada por zona rica em partículas arenosas, altamente propiciadores desse tipo de deslizes acentuados. Não havia joelho ou calças que resistissem, de tal forma que as mães estranhariam caso os filhos chegassem a casa vestidos sem qualquer buraco, pensariam que não teriam amigos, que se estariam a integrar mal no infantário, que seriam alvos de qualquer malvadez comportamental infantil e que certamente o seu filho passaria os intervalos sozinho fechado na casa de banho ou na sala. Ter o joelho a sangrar, era portanto naquele infantário, sinal supremo que a criança tinha amigos, brincadeiras e que sem sombra de quaisquer dúvidas se divertia. No entanto e por trás de toda a imaginação utilizada pelos pequenos naquele recreio, estava sempre a enorme e longa vivida árvore. Era uma espécie de centro de todo aquele recreio, era sempre o local mais importante, o castelo do rei, a máquina do tempo, o vai e vem espacial, o quartel da polícia, era o infinito imaginário das várias crianças, era tudo, tudo menos uma simples e gigantesca árvore velha.

Mas por mais que todas as brincadeiras ou aventuras imaginadas constituíssem a principal razão de viver de todo aquele infantário, houve naquela época um longo período de tempo dominado por um inocente e desafiador desabafo infantil. Deu-se esse, quando certo dia um rapaz de pequena estatura referiu a outro, que tinha como boleia de fim do dia um Ferrari vermelho…

- O meu avô hoje vem-me buscar!

- Que carro tem o teu avô?

- Tem um carro vermelho que é muito rápido!

- O carro do meu pai é azul, mas é melhor que o do teu avô! E anda mais depressa!

- Não anda não! O meu avô tem um Ferrari! E hoje vem-me buscar nele!

Foi depois desta revelação surpreendente que todo o jovem aglomerado que povoava o recreio se reuniu em volta do seu novo herói momentâneo. Interromperam-se corridas por títulos supremos, interromperam-se intensas batalhas pela conquista do castelo (ou árvore, dependendo da imaginação de cada um), interromperam-se todas e qualquer tipo de brincadeiras, houve mesmo castelos de areia que foram desmanchados pelos pés dos curiosos, e espadas que foram perdidas no meio de toda aquela confusão. Ninguém acreditava ou queria acreditar realmente na existência do Ferrari vermelho, mas também ninguém se atrevia a duvidar em voz alta de tão poderosa revelação, tudo porque segundo o revelador, iriam todos ter oportunidade no fim daquele dia, de ver com os próprios olhos o carro tão imaginado e venerado. Aí sim, se verificaria se era realmente verdade, ou se tratava apenas de um rapaz mentiroso em busca da maior fama possível.

O fim da tarde chegou, os carros começaram a estacionar na parte da frente do infantário e os pais começaram a levar os filhos para casa, estes refilavam, suplicavam e pediam aos graúdos para esperarem mais algum tempo, eles queriam ver o carro, queriam ver o prometido avô a chegar. Os pais não os atendiam, arrastavam-nos para dentro do carro, alguns faziam cara feia e os pequenos lá obedeciam cheios de pena, outros aplicavam um raspanete mais pesado e o filho não tinha outra alternativa a não ser fazer-lhe a vontade, entrava no carro e agarrava-se ao vidro de trás na esperança de ainda poder ver o momento em que o carro vermelho finalmente apareceria. Até que chegada a altura, restavam apenas uma meia dúzia de testemunhas no local, 6 rapazes com a ânsia acumulada de todos os outros. O avô finalmente apareceu, o neto identificou-o mal viu um Renault 21 cinzento a virar a esquina antes de se aproximar do parque de estacionamento, mas permaneceu sempre calado, nunca quis denunciar a mentira antes de ser estritamente necessário, antes de se aperceber que não teria mais nenhuma alternativa senão dizer a verdade.

O avô saiu do carro e olhou de imediato para o seu neto, fechou a porta e iniciou marcha na direcção da entrada, à medida que se ia aproximando do desgraçado e mentiroso neto o seu rosto ia sorrindo cada vez mais, em disposição inversa estava o rosto do rapaz, que era cada vez mais pesado e denunciado. Foi então que quando todos se começavam a aperceber da mentira e ele se preparava para revelar toda a verdade, que o avô em vez de dar um habitual e desastroso beijo, estendeu a mão na direcção do neto…

- Menino! Como está? O seu avô mandou-me vir buscá-lo! Pede-lhe desculpa mas não conseguiu cá vir pessoalmente porque teve que levar o Ferrari à oficina!

Disse em sorrisos cumprimentando cordialmente o neto. Este ao ouvir estas palavras mágicas virou-se para trás e exibiu para as testemunhas um sorriso glorioso, digno de rei. Os outros não queriam acreditar.

Nos dias seguintes ao acontecimento a notícia espalhou-se por todos os cantos do recreio para permanecer viva no imaginário das crianças daquele infantário durante muito e longo tempo. E sempre que o tempo provocava novas dúvidas, ou alguém novo punha em causa a existência do Ferrari, o avô arranjava forma de dissipar as dúvidas na cabeça de todos os pequenos ingénuos, e assim, durante longo tempo, o avô fez do neto, o rei do recreio.

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terça-feira, dezembro 04, 2007

Cérebro Ansioso

A ordem do cérebro foi no sentido de abrir os olhos, no entanto alguma parte da sua anatomia não estava a responder como era suposto. Os olhos permaneceram fechados, ordem após ordem permanecerem sempre fechados. A início não percebeu a razão para aquela desobediência física, sempre fora um atleta nato, nunca na sua vida tinha tido qualquer problema em termos físicos, nunca a sua condição física tinha representado qualquer tipo de obstáculo para qualquer que fosse o seu objectivo, mas ali estava ele, deitado numa qualquer espécie de superfície sem qualquer tipo de controlo físico sobre o seu corpo. Não sabia sequer se estaria realmente deitado, julgava que estava, confiava nos seus instintos que de forma mais ou menos óbvia o levavam a acreditar nisso. Não se conseguia também aperceber se estaria estendido sobre superfície confortável ou rija, não sentia as costas, não sentia o material que lhe roçava nas costelas, parecia-lhe que apenas o cérebro estava vivo, não se conseguia mexer, não conseguia transformar em prática qualquer movimento teorizado pelo cérebro. Lembrou-se que só podia estar morto, fundamentou isso com algo que tinha lido há uns anos atrás, o cérebro poderia de facto continuar a ter actividade após a morte, pensava no entanto que essa actividade seria sempre apenas na ordem dos segundos, tinham falado sempre na ordem dos 7,8 segundos, nunca em longos minutos de consciência, mas ali estava ele, a formular pensamentos e ideias sem conseguir sentir um único membro. Quando finalmente abandonou as intenções fisiológicas e se centrou naquilo que se passava à sua volta, constatou que conseguia ouvir, conseguia pelo menos perceber aquilo que se dizia à sua volta, ou à volta do seu corpo pelo menos. Ouviu uma voz familiar e centrou-se nela tentando identificar a quem pertencia…

- Coitadinha da minha Margarida! Não sei se ela vai conseguir viver sem ele, amava-o perdidamente e ele amava-a a ela, via-se nos olhos dos dois, todos os dias se amavam.

Percebeu que a voz era de uma sua conhecida, uma senhora já de idade avançada que tinha por ele enorme carinho, era incapaz de confundir aquela forma sempre carinhosa de falar, a senhora Ana, mãe da sua devoção, tinha ido ao seu funeral. Continuou a centrar as suas atenções no que se passava fora do caixão e deixou para segundo plano o facto de nenhuma parte do seu corpo atender a ordens do seu cérebro, ansiava por ouvir uma última vez a voz de Margarida, teria ela ido à sua despedida? Será que as forças lhe tinham faltado? Não a culparia por isso, imaginou-se no lugar dela e pensou que se fosse ele provavelmente não teria coragem.

- A margarida já chegou?

Ouviu alguém perguntar próximo de si.

- Não ainda não, o João estava com ela, disse-me que está difícil ela vir cá, não sai da cama a pequena, acho que isto tudo foi forte demais para ela. Dizem que ela o deixou sair de casa aborrecido com qualquer coisa. Tinham tido uma pequena discussão qualquer sem importância, mas ela não se quer desculpar por isso, acha que foi tudo culpa dela, diz que se ele não estivesse chateado não teria chocado com o outro carro…

Ele não estranhou o que ouviu, sempre soube que Margarida se preocupava demais com assuntos insignificantes, imaginava o que aquilo seria para ela, a forma como se culparia mesmo sabendo que o acidente nunca teria sido originado por qualquer discussão por mais grave que esta fosse. Lembrou-se do acidente, recordou que lhe tinham embatido frontalmente, tudo tinha acontecido muito depressa, não tinha havido tempo para nada, nem para virar o volante, nem para carregar a fundo no travão, a colisão tinha sido inevitável desde o início, nem se chegou a aperceber como o outra viatura tinha galgado o separador da estrada e tinha vindo parar ao seu lado, provavelmente estaria bêbado ou adormecido o outro condutor. Agora Margarida culpava-se sem razão, tudo porque o último momento partilhado pelos dois tinha sido rico em provocações ligeiras e pobre em carícias, ele sabia que ela se culparia por aquilo até ao fim da sua vida, estava nos seus genes ser assim, culpar-se por tudo o que lhe acontecia de mal…Se ao menos pudesse falar com ela uma última vez, dir-lhe-ia que até nas derradeiras discussões a amou.

- Margarida! Estás bem filha? Queres que te deixemos uns momentos com ele?

Ele nunca chegou a ouvir qualquer resposta, teria sido dada com a cabeça, apenas sentiu Margarida perto de si uma derradeira vez, sentiu-a a pousar a cabeça no seu peito e pela última vez imaginou o remoinho no cabelo de Margarida pousado em si, enfeitando a sua pele, em jeitos denunciados de confissão amorosa. Sentiu os seus olhos grandes e verdes pousados na sua cara, olhando-o uma última vez. Por fim conseguiu ouvi-la numa última e generosa oportunidade e sentiu-a sair a correr da sala…

- Desculpa! Foi sem intenção…

Disse ela.

Instantes depois o seu cérebro morreu, entrando em sintonia com o resto do corpo.

Nota: “Biologicamente, a morte pode ocorrer para o todo, para parte do todo ou para ambos. Por exemplo, é possível para células individuais, ou mesmo órgãos morrerem, e ainda assim o organismo como um todo continuar a viver. No entanto e no caso do coração parar a sua actividade, o cérebro apenas se poderá manter vivo por um curto espaço de tempo.”

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segunda-feira, novembro 26, 2007

Batalha nas sombras

A sala estava parcialmente iluminada, os pequenos candeeiros que iluminavam a divisão tornavam visíveis apenas as paredes de um dos lados da sala. Com esta luz unidireccional, apenas metade da sala irradiava luz e qualquer objecto interposto entre essa mesma fonte de luz e as paredes iluminadas originava sombras desproporcionais ao seu tamanho real. A televisão estava ligada e focava um qualquer programa pseudocultural a quem ninguém prestava real atenção. Ricardo estava sentado no sofá da sala, distraído na sua imaginação, absorvido por mundos paralelos criados pelas suas células cerebrais quando de repente se focou na parede em frente a si. Começou por endireitar a cabeça e verificou que na parede a sombra multiplicava o seu crânio por 4 ou 5 vezes o seu tamanho, de seguida levantou um dedo, uma mão, o braço por inteiro, tudo de forma gradual até que as diferentes partes do seu corpo pudessem fazer lembrar outro qualquer objecto quando em sombra na parede iluminada.

Via-se claramente um pássaro, batia as asas sempre que precisava de subir, abria-as sempre que optava por planar mantendo a altitude, tinha um bico estranho, asas longas e parecia não apresentar qualquer tipo de membros inferiores. Era no entanto capaz de se equilibrar sem qualquer tipo de esforço nos únicos membros de que dispunha e parecia fazer dessa característica imagem de marca. Efectuava voos picados sobre um grupo de pessoas que se encontravam lá em baixo no solo, era também visível que dentro deste grupo de pessoas quase todas estavam armadas com utensílios afiados, espécies de lanças que procuravam espetar no pássaro sempre que este se aproximava o suficiente para os atacar. O pássaro terá tentando algumas vezes o ataque às suas presas, sem no entanto ter tido qualquer tipo de sucesso, até que os humanos ganharam confiança e começaram a adoptar posições dignas de combate, preparando conjuntamente possíveis ciladas à criatura dos céus. Foi quando se preparavam para a derradeira investida sobre a ameaça, que guinchos intensos invadiram o ar, guinchos esganiçados e provocadores de agoniante sofrimento para os ouvidos dos moralizados caçadores, que de forma instantânea largaram por momentos as lanças e levaram as mãos aos ouvidos em atitude de desespero e impulsiva protecção. Como a poluição sonora já o fazia prever, um número incontável de estranhos pássaros juntaram-se então de forma eficaz ao já anterior assassino dos céus. Ao se aperceberam do reforço dos inimigos, os desgraçados e quase surdos humanos iniciaram fuga louca por toda a planície, numa busca desesperada por qualquer espécie de abrigo que teimava em não aparecer. A perseguição foi longa, até que precisamente na altura em que os pássaros conseguiram obter posições vantajosas para que a chacina humana fosse certa, um herói no meio dos fugitivos deu com uma cave secreta nos escombros de uma anterior batalha e em gesto irreflectido de bondade, encaminhou os restantes para o local, salvando centenas de vidas à sua espécie. Permaneceram naquela cave tempo demasiado longo para ser contado, olhando uns pelos outros, juntando esforços para que nenhum inimigo os conseguisse perturbar, mantendo sempre uma vigia nos céus, espreitando por uma fenda oportunamente feita na madeira que lhes servia de tecto, tudo feito em turnos de 2 horas e 2 pessoas, para que nada escapasse aos olhos sedentos de protecção.

Foi num destes turnos, provavelmente no 4º ou no 5º turno, que um dos vigias detectou um outro animal povoando os céus, estranho também como os anteriores assassinos, mas no entanto estranhamente reconfortante para quem o observava, como se viesse acudir a desgraça dos prisioneiros. Efectuava voos de observação do terreno e procurava localizar os humanos, era dado adquirido que o fazia em protecção dos mesmos, essa certeza era facilmente confirmada pela criatura de raça humana que o dirigia, montado em enorme e consistente sela, abanando as rédeas do portentoso animal, gritando nomes para identificação dos prisioneiros. Para surpresa dos escondidos da cave este animal fisicamente assemelhado a um dragão não vinha sozinho em seu auxílio, a ele se juntavam meia dúzia de seres de dimensões idênticas e preparavam-se claramente para o combate, a forma em “v” nos céus denunciava facilmente essa intenção, bem como as armas dispostas no longo pescoço dos animais. O massacre ao inimigo foi então conduzido pelos reforços vindos do céu ao mesmo tempo que da gloriosa cave emanavam gritos de vitória e de consagração de vida. Tudo terá durado ao todo uma dezena de minutos, ao fim dos quais os restantes membros da inicial ameaça já batiam em apavorada retirada, procurando nos destroços do céu um meio de fuga e consequente salvação. Em meio de vitória estavam agora os sobreviventes da cave, que após longas horas abandonavam finalmente as suas posições, e juntavam-se à gloriosa perseguição final, todos lançavam as lanças e os braços no ar em gestos de vingança justificada e alegria incontida, sorriam uns para os outros, abraçavam-se como forma de celebração e esperavam pacientemente acolher a sua voadora salvação. A guerra já estava ganha e os vencedores juntavam agora esforços na salvação dos feridos, quando se vez ouvir em todo o campo de batalha uma voz superior…

-Ricardo!? Quantas vezes tenho que te pedir para pores a mesa? O jantar já está feito!

A superior mãe irrompia desta forma por entre os despojos da batalha. Interrompendo a batalha travada à hora de jantar na parede da sala, mesmo em frente ao sofá onde Ricardo estava sentado. Assim que baixou as mãos, Ricardo olhou uma última vez a parede, os dragões e os humanos tinham desaparecido e o campo de batalha estava agora deserto.

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sábado, novembro 17, 2007

Amores de Liceo ***

É fim da tarde em Barcelona. Vista de cima, a cidade encanta quem a olha. As impressionantes moradas esculpidas por Gaudi reflectem uma cor alaranjada e proporcionadora de ambiente extraordinariamente calmante. De toda a cidade, os prédios são mesmo os constituintes mais apaziguadores, as pessoas, essas, viajam à velocidade da luz, descrevendo nas ruas da cidade trajectórias irregulares e inéditas, pintando linhas numa espécie de quadro vivido de dinâmica caótica. As calçadas e o alcatrão inundam-se de gente apressada no seu iminente regresso a casa, todos parecem cansados e de pensamento centrado no momento em que serão recebidos pela família assim que se encontrarem na sua familiar morada. Os táxis parecem poucos para tanta clientela e os autocarros aguardam rios de gente que espera pacientemente pela sua vez de picar o bilhete, por fim lá o picam e procuram lugares para se sentarem, quando já não os há permanecem de pé, alguns encostam-se nas gentes que partilham o mesmo transporte e que por ocasional delicadeza não se importam de permitir tal confiança. O cansaço desculpa tudo, o cansaço vitima até habituais resmungões que por aquelas tardes se fazem acolhedores, o contrário também acontece e há gente calma e constante que revela agora rosto fechado, impenetrável e por vezes ameaçador. Há carros parados no meio da estrada, toques rodoviários de última hora obrigam a minutos valentes e longos de engarrafamentos, retardando vidas familiares, impedindo que miúdos se divirtam com os pais antes de jantar, destabilizando compromissos e jantares planeados com antecedência.

Observando toda a movimentação, Pedro decide ir de metro para o Hotel, prescindindo da extraordinária beleza citadina enriquecida pela luz tardia do sol, de forma a evitar prolongamentos indesejados em pernas já desesperadas por descanso. A estação está também ela lotada e barulhenta, invadida por murmúrios de línguas estrangeiras à cultura de Pedro e por ocasionais choros de bebés descontentes com a esperada hora de ponta. As línguas enrolam-se e desenrolam-se a uma velocidade desconcertante, as conversas misturam-se confundindo o ambiente e amigos despedem-se aceleradamente uns dos outros, deixando no ar palavras imperceptíveis e na pior das hipóteses simpáticas. Pedro lembra-se da música como trunfo para suavizar a situação, lança a mão no fundo da mala e encontra o tocador de melodias, desenrola-o e leva os auriculares aos ouvidos, carrega “Play” e deixa-se envolver. Aos poucos o ambiente vai entrando na música, vai evidenciando particularidades presentes no ritmo da mesma, deixa-se fazer de cenário para a melodia e ao fim de breves minutos, tudo parece fazer parte do mesmo ambiente. A música deixa de estar descoordenada com os acontecimentos e deixa de servir apenas como calmante do momento, faz agora parte daquela carruagem e tudo parece mover-se segundo os seus acordes, desde o abrir e fechar das portas até ao movimento acelerado das pernas dos passageiros. As estações vão-se seguindo e os olhos de Pedro contemplam centenas de rostos que vão e vêem, vão e vêem os passageiros sem qualquer ordem e aproveitando o ritmo do metro, enchendo espaços e lugares já bem ocupados por outros. O desespero pelo fim da viagem é agora praticamente desprezado pelo português, que ao som das guitarras lembra agora a sua família, lembra os momentos passados anteriormente ao som daquela mesma banda sonora, anseia por os repetir, anseia estar perto dos seus protagonistas, sonha voltar a ter o papel central da acção.

A certa altura e trazidos no ajuntamento de personagens que dá entrada na carruagem, 3 miúdos se destacam à vista de Pedro. Algo neles o faz identificar-se, o faz querer observar e estudar a situação em que se encontram. Centrando a acção neles, consegue distinguir duas raparigas e um rapaz, elas terão mais de uma dúzia de anos, talvez 14, ele é aparentemente mais novo, talvez uma dezena, talvez 11 anos. É também franzino o rapaz, possuidor de rosto malandro e cabelo modernamente penteado, juntado com gel à frente, tem uma t-shirt preta enfeitada com logótipos e frases identificadoras de uma qualquer banda espanhola. Olha de forma deslumbrada uma das duas que o acompanham, observa-a hipnotizante numa saia preta e branca e enfeitada por brincos largos e redondos, ela responde-lhe com sorrisos e com expressões francas de “derretimento” amoroso.

O metro abranda em aproximação à próxima estação. Nas paredes lá fora estão escritos identificadores de “Liceo”. Ele é apanhado meio de surpresa e em atrapalhados gestos despede-se da amiga e da rapariga retentora da sua admiração e sai para a estação. O metropolitano recomeça o seu andamento e ela, vendo o seu admirador afastar-se, corre para a janela e chama apaixonadamente pelo seu nome. Ele apercebe-se e ao olhar para dentro da carruagem encontra o olhar dela e sorri encantadamente, um sorriso de pura inocência e felicidade. A apaixonada cora e a amiga ri-se por ela, tal como toda a carruagem, tal como Pedro que procura uma interpretação para todo aquele momento.

Por fim apercebe-se, por um segundo, no metropolitano de Barcelona, ao fim do dia, o tempo parou e o mundo é perfeito.


*** Conto inteiramente baseado no post de mesmo nome do blog de Pedro Ribeiro (http://osdiasuteis.blogs.sapo.pt/).

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quinta-feira, novembro 15, 2007

Castro, o vingador

O jovem Castro foi sempre cidadão exemplar, digamos que de dentro do conjunto de pessoas que constituíam a população da sua região, foi um dos que mais contribuiu para o bem-estar geral e dos que menos praticou o “mal”. No entanto, e desde o seu nascimento, jurou acabar com a injustiça de que tinha sido alvo e não descansou enquanto não se sentiu vingado.

Começando do inicio… João Manuel Castro foi o nome que lhe foi dado pelos pais aquando do seu nascimento. Nasceu em casa, num tempo em que nascer em hospitais fazia parte de um luxo, apenas ao alcance de muito poucos, aliás, as únicas pessoas que nasciam naquela época em qualquer centro de saúde ou hospital, eram ou constituintes de famílias enriquecidas, ou simplesmente moradores de redondezas desses mesmos estabelecimentos. Sendo assim, em qualquer terra isolada, isto é, terra longe de qualquer cidade principal possuidora de centro de acolhimento apropriado ao nascimento de novos indivíduos, não havia ambulâncias que fizessem quilómetros e quilómetros de estradas secundárias, para que uma criança recém-nascida tivesse acesso ao privilegiado nascimento assistido. Assim, as novas crianças destas terras longínquas, tinham apenas direito a serem assistidas por uma qualquer espécie de enfermeira (na maioria das vezes improvisada) e pelo padre da aldeia (se o marido deixasse), que com algumas preces tentava acalmar ou simplesmente contribuir para o pânico da nova e sofrida mãe. Escusado será dizer, que muitas das vezes este padre ou entrava em pânico por nunca ter visto algo semelhante, ou entrava em pânico porque o sujeito da parição simplesmente soltava palavrões e palavras capazes de ferir membros do clero, por menos susceptíveis que estes pudessem ser. Resultado final, a mulher berrava até à exaustão, enquanto o padre entrava em pânico, interrompendo-o horas depois, altura em que o choro da nova atenção da terra se transformava em puro encantamento. Isto era portanto regra primordial sempre que o pregador de missa assistia pela primeira vez a um nascimento, acabando nas vezes posteriores, por se habituar, ou simplesmente rezar pela mãe e pelo novo filho no exterior da casa, longe de visões e exclamações chocantes.

O nascimento de João não foi excepção à regra, processando-se de forma tradicionalmente semelhante a esta. Tomaram portanto parte neste nobre acontecimento, uma mãe, um João pronto a nascer, uma mulher que segurava a mãe do lado esquerdo, uma mulher que segurava a mãe do lado direito, outra mulher que procurava incentivar a berrante grávida, uma enfermeira formada na capital (tinha de facto tirado todo o curso em Lisboa) que desempenhava todo o principal papel cientifico do acto (sendo olhada de forma estranha por todas as outras, que sendo inexperientes em situação semelhante, ora a admiravam, ora se ruíam de inveja) e a cunhada da protagonista (futura tia de João portanto) que lhe passava um pano húmido pela testa, em tentativa desesperada de a acalmar, ao mesmo tempo que sacrificava a sua mão, exprimida até ser órfã de sangue, tudo em benefício da futura mãe e do seu já estimado futuro sobrinho. Finalmente tomou também parte no acontecimento, o estreante e jovem padre da aldeia, homem caricato e possuidor de testa capaz de servir de pista de aterragem, a aviões de escala reduzida. Este homem, era também conhecido e caracterizado por discurso demasiado lento e extrema calma em situações difíceis e de facto, durante todo o parto, o padre não soltou qualquer palavra reveladora de choque ou surpresa, mas chegada a altura de João abandonar a sua antiga morada, soltou grito ouvido por toda aldeia e aldeias vizinhas (segundo constava nas conversas ditas “fora de fronteiras” ), ao qual se seguiu desmaio fulminante e revelador de fracos rins e emoções. Desta forma, quando João finalmente abandonou o interior da sua mãe, a “plateia” dividiu a atenção entre a sua pessoa e o pobre do padre, estendido no chão.

Talvez por esta razão, João nunca gostou do padre, considerava-o de forma altamente intuitiva, um ladrão de atenções cruciais, considerava-se como que prejudicado pela imprópria divisão de atenções na hora do seu nascimento, sentindo-se lesado e alvo de incompleta atenção. O momento de nascimento deveria portanto ter sido um momento inteiramente dominado por ele e o padre impossibilitara isso, com o seu fraco sentido da natureza de um parto. No entanto e de forma contrariada, João teve educação católica, sempre foi à missa (dada por esse mesmo padre todos os domingos), confessava-se ao padre sempre que corriam boatos que era um desalinhado, enfim, fazia a sua vida católica normal, sem no entanto deixar a sua memória esquecer. O padre devia-lhe pelo menos 30 minutos de atenção por parte da aldeia e ia ter que os pagar.

O jovem Castro montou então durante anos, pormenorizada operação de estudo ao comportamento do padre. De tal forma, que em todos as missas que o padre dava o jovem Castro assistia, estudando as suas palavras, os seus gestos, os seus tiques, tudo aquilo que o poderia caracterizar era criteriosamente investigado por este improvisado e vingativo espião. Mantinha-se sempre alerta, sempre pronto a perceber qual seria a melhor altura de se vingar e lançar golpe inesperado pelo padre ladrão de atenções. Chegou mesmo a ensaiar um golpe na sua cabeça, repetindo-o até à exaustão, chumbando-o e reformulando-o vezes sem conta, até chegar a um perfeito esquema final, posteriormente ensaiado através do sussurrar das falas que o constituíam, tal e qual um actor dramático nas horas que antecipam cada exigente peça teatral.

Esse golpe final, tinha então dois outros intervenientes descobertos pelo atento Castro em visitas do padre a aldeias vizinhas. Desmascarado por manter sempre a mesma rotina, foi assim notado por atender nestas “excursões” a bem mais que as necessidades da igreja, atendia também às necessidades de duas senhoras de meia-idade, que alternadamente numa aldeia e noutra eram atendidas amorosamente pelo ladrão de atenções. O vingador estimou esta preciosa descoberta, e foi então que finalmente arranjou forma de levar as duas a coincidir na missa da sua terra, enviando a cada uma igual e romântico bilhete acompanhado de rosas, nos quais indicava a hora e o lugar de comparência obrigatória para que a paixão fosse continuada, bem como as instruções sobre a altura e a maneira como agir. Restava esperar e ansiar o dia, tal como um militar anseia pelo regresso a casa.

O dia chegou, o último do mês em que se encontravam, escolhido por ser domingo e por normalmente se verificarem as maiores afluências à missa nesse mesmo dia. Escolheu a missa do meio-dia, de forma que as 12 badaladas dos sinos servissem como uma espécie de entrada dramática ao que se iria passar no interior da igreja. Tudo se iniciou então dentro da normalidade, o padre discursou durante toda a missa sem qualquer ideia do que lhe iria acontecer, sem sequer reparar nas duas caras familiares que se encontravam algures pelo meio dos seus atentos ouvintes. A primeira dessas caras estava então a não mais que 10 metros de si do lado esquerdo, em posição central e a segunda do lado oposto, ligeiramente mais afastada, mas também em posição privilegiada e digna de interveniente principal na acção. Acabada a missa e quando toda a gente estava já levantada e a dirigir-se lentamente para a porta, as duas mulheres seguiram até ao altar, chamaram em simultâneo pelo seu amante e ficaram a olhar de frente uma para a outra. Rapidamente e tendo em conta os boatos, se aperceberam do acto de traição de que tinham sido alvo e quando o padre deu sinais de vida e se deparou com as duas ali na sua frente, foi novamente demasiado fraco e não evitou um novo desmaio.

Foi aí então, que a atenção se voltou contra o desmaiado e o vingador Castro assumiu o controlo das operações, explicando a toda aquela admirada assistência de crentes, o porquê de novo desmaio repentino por parte do padre, recuperando assim toda a atenção e todo o tempo, que lhe tinha sido roubada na hora do seu nascimento.

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terça-feira, novembro 13, 2007

Do mundo não, mas da Europa quase.

Foi o dia mais colorido de todos os dias. Foi o final de festa (quase) perfeito. Lembro-me da Inês, uma cara bonita de quem lia as crónicas religiosamente n'"A Bola", cujo único mérito foi ter juntando umas pinturas á cara e ter sido apanhada num sorriso do tamanho do mundo num dos jogos da primeira fase. Lembro-me de achar que a meia-final era cumprir calendário, porque não havia maneira de não levarmos o caneco na Luz, em nossa casa. Num dos actos mais ilógicos da minha existência, a seguir ao golo do Maniche só me preocupei com o Grécia-Rep. Checa do dia a seguir para saber quem ia perder na final.

Sinceramente, e olhando para trás há todo um mundo que separa quem venceu aquele prolongamento no Dragão: a Rep. Checa era a equipa que melhorava jogava futebol naquele torneio e a Grécia o pior. Desde desse golo de Dellas que me tornei mais científico e menos artístico, porque foi a prova cabal que a arte não vale nada. Era quinta-feira à noite e a festa começava.

Enquanto o Primeiro-Ministro em funções na altura se preparava para fazer cair o governo e instaurar a comédia, o país viveu as 72 horas mais belas deste prematuro século. Com as suecas, as dinamarquesas e as holandesas a abandonarem Lisboa em horda, eis que só ficavam-nos nós e os gregos para decidir a contenda, numa cidade muito mais monocolor do que aquela que era antes dos 1/4 de final.

Lembro-me de no sábado ter tomado aquela que ainda hoje considero a pior decisão da minha vida: ao contrário de todos os outros jogos, decidi ir ver a final a um sítio público, ao Parque das Nações com dois amigos com quem tinha acabado há dias o liceu. Ainda hoje acho que a minha mãe não me perdoou ter ficado sozinha para a festa, que afinal acabou por não acontecer. E sim, ainda hoje acredito que se tivesse visto a final do meu sofá da sala teríamos, pelo menos, ido a prolongamento com aqueles sacanas.

No próprio dia acordei muito nervoso e em nada mais consegui pensar: era o Jogo. O jogo e ainda o jogo. Cheguei ao local do crime e vejo lá ao fundo, em cima da Ponte, o autocarro do nosso contentemento. Era bom sinal ver a equipa antes da "coisa". Não havia um único sítio para ver a bola em todo o Parque das Nações e chegamos a encontrar uma (linda) irmã de um dos amigos sentada no meio do chão de um dos bares também preparada para sofrer certamente.

Foi só mesmo no último dos bares, para quem vem da zona das bandeiras que encontramos um sítio com lugar para 3 corpos disponível, tipo metro em hora de ponta. Entramos e recebi uma chamada de alguém que estava no Porto a ver também o jogo. Era a melhor amiga da tipa que me tinha partido o coração uns meses antes. Depois dos salamaleques habituais, um boa sorte para aqui, um boa sorte para ali, e eu estava preparado.

Lembro-me que o ecrã desse bar (que não me lembro o nome porque me recuso a lá entrar ou a lhe olhar para o frontescípio desde então) era uma mistura de ecrãs em cima uns dos outros - formando um só ecrã grande - que davam à transmissão da partida uma dificuldade: de vez em quando a bola ia parar à zona que separava um ecrã do ecrã de cima e perdíamos o fio à meada. Mas pronto, era tarde demais e era a única maneira de ver o jogo, pensei eu.

Lembro-me de cantar o hino com uma força assustadora como se a minha vida dependesse disso. Mas lembro-me do momento de quase-morte que vivi ainda na primeira parte: um remate do Figo - ou teria sido do Maniche? - que, atráves daquela série de ecrãs entrelaçados por riscos pretos deu mesmo a sensação de ter entrado. Nunca tive tão perto de ter um ataque cardíaco. Gritei o mais alto dos berros e explodiu-me literalmente o peito numa dor aguda e certa de termos chegado à vantagem. Só praí 30 segundos depois de todo o bar ter percebido que a bola tinha ido fora é que eu parei de gritar golo quando toda a gente já estava a olhar para mim de lado. Nunca passei tão depressa da alegria extrema à vergonha súbita tipo "onde é que está um buraco no chão para eu me enfiar?".

Na minha imberbe juventude e perante a tristeza anti climática de um 0-0 foco a minha atenção meio no jogo, meio numa rapariga deliberadamente vestida para provocar que estava à nossa frente e que me deve ter servido para descansar a vista após o golo grego (sinceramente entre o golo de Charisteas e o final do jogo não me lembro de nada).

Mas o golo? Como já disse, via-se muito mal o jogo e só se tinha a noção mais ou menos clara que se tinha passado alguma coisa de importante quando se ouvia o relatador o referir. Só me lembro de duas coisas: da desilusão que foi o golo (um amigo ainda disse, ainda não sei se meio a brincar se meio a sério que eu não devia ter ficado tão triste porque "ele já estava habituado a estas coisas - mas como é que alguém se habitua a um sofrimento destes?!? - até hoje me custa falar nisto, caramba...) e de no dia a seguir a capa d'"A Bola" ser hilariante (ainda tenho todos os jornais da época!): a final era remetida para o pé da 1ª página, quando a manchete era o novo treinador do Benfica (que me ia dar, dois bares atrás, uma grande alegria) Giovanni Trapatonni. Mas essa é uma outra história...
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Campeões do Mundo

A cidade acordou em desassossego, por todo o lado se viam carros energéticos, quase todos apitavam, quase todos o faziam numa espécie de celebração e nem os habituais condutores inquietados de transportadoras faziam das suas carrinhas armas de combate a rotundas e cruzamentos (como era hábito matinal dos dias úteis). Em vez disso, lá aderiam também eles com fortes buzinadelas em nome da causa comum. Por todo o lado e desde bem cedo se inundavam as ruas. Qualquer rosto percorrido parecia esgotar de felicidade e entre corredores regulares e gente caseira transformada em transeunte, ninguém parecia afectado por ter de trabalhar ou esperar transportes públicos. Ninguém era representante do habitual equilíbrio entre tristeza e felicidade matinal. Toda a cidade representava assim espaço anormalmente desequilibrado, uma espécie de balança em que o lado da felicidade pesava sempre mais que o lado oposto, por mais pesos que se fossem adicionando em compensação.

Tudo encadeado por causa comum, uma representação desportiva do país que correra francamente bem e que contra todos os prognósticos (a não ser os de gozo), se fazia agora idolatrar por chegar ao jogo final de um campeonato mundial. Feito único e nunca antes vivido por gente tão repentinamente nacionalista. Assim se justificava a disposição geral de uma cidade que era apenas réplica de todas as outras pelo país fora (e de algumas outras estrangeiras mas contudo altamente “nacionais”). Assim se justificavam os sorrisos rasgados, as piadas sobre nações derrotadas, os carros e as casas pintadas pelas cores beijadas e com essas mesmas cores as bandeiras, duas ou três por varanda, mais duas ou três nos vidros das marquises, até algumas mais que chegavam a pintar veículos e a nascerem de tubos de escape fugidos à inspecção. Até os sinais pareciam colaborar, ora verdes, ora encarnados, ora esporadicamente amarelos, tudo em sintonia genuína, sincera e nacional, esperando fazer balançar a equipa para o passo final, fazer de todos campeões do mundo.

Com a chegada da hora do jogo, todas as televisões e rádios parecem ter promoções especiais, oferecem bilhetes, camisolas, qualquer tipo de semblante de cores certas, tudo em troca de hinos cantados antecipadamente ou prognósticos irrealistas de vitórias por 10 a 0. Senhoras de idade e vendedores ambulantes gritam nas ruas o nome apetecido, intercalam-no com camisolas vermelhas a preços também eles irrealistas, dão a conhecer as promoções e as vantagens da compra e logo de seguida novamente, justificam-se em nome da pátria. Foram mesmo colocados em localizações centrais e monumentos simbólicos, relógios gigantes em contagem decrescente, em que cada hora, cada minuto e cada segundo parece deixar quem os olha mais ansioso e mais português.

As portas do estádio da final, abrem-se umas quatro horas antes da final. Felizardos com bilhetes regateados a preço de diamante ocupam as cadeiras de imediato e imaginam na relva verde e bem tratada, os lances mágicos, condicionantes e causadores da explosão nacional. Tudo vai correr bem, nem um adepto dúvida nesse aspecto, nem mesmo os que costumam espreitar em casa os jogos pelo canto do olho, argumentando que não gostam de futebol e que não tem qualquer sentido tudo o que o rodeia e se move por ele e com ele. Casais de namorados fazem também do estádio o seu teatro favorito para o romance, dizem palavras melodiosas uns aos outros e mesmo parecendo não abordar o tema da “bola”, sonham sempre com o momento em que a bola entra na rede, momento esse a ser celebrado com justificado romantismo nunca antes conseguido. Viva Portugal!

Um rapaz compenetrado nas suas memórias tenta-se lembrar de como nasceu a sua paixão pelo futebol. Veio ao futebol com o pai e lembra-se que sempre o fez desde pequeno, tem também a certeza que passará esse hábito ao seu filho, mas nunca se lembra do primeiro momento em que o amor o levou a ir ao estádio apoiar a carne e o osso dos jogadores. Sabe que a paixão pela selecção não é como as dos clubes. Amor à selecção caracteriza-se por um amor comum a toda a gente que fala a mesma língua e se entende pela mesma cultura, não há sotaques, não há guerras entre cidades conterrâneas. Todos sofrem pelo mesmo, todos atingem o grau de loucura exactamente ao mesmo tempo e inundam-se de tristeza pelo mesmo motivo. Em nenhuma outra altura isto é possível, o teatro tenta fazê-lo, o cinema também, a música anda lá perto, mas apenas o futebol o consegue.

O jogo está a momentos de começar, o estádio ferve de emoções, milhares e milhares de desconhecidos quando colocados lado a lado parecem conhecerem-se desde sempre, riem juntos, declamam poesia juntos, cantam o hino com a voz do coração e sentem-no mesmo a palpitar mais forte. 60 mil almas no local arrepiam-se exactamente no mesmo instante que milhões de almas o fazem em casa, à distância da televisão.

O jogo começa e sente-se no ar a certeza. No fim destes 90 minutos, somos todos campeões do mundo.

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segunda-feira, novembro 12, 2007

Cão branco

Ana levantou-se naquele dia de peito aberto para o mundo.

Tinha então no dia anterior, marcado para o dia actual, uma entrevista para um trabalho que perseguia há muito tempo, um sonho de uma vida que agora finalmente tinha hipótese de ser realizado, o concluir de todas as suas aspirações e esforços. Tudo na sua vida tinha sido feito a pensar num determinado objectivo e aquela entrevista, representava “apenas” a última etapa antes da meta, o último passo para o sonho, o último passo para a vida que queria levar até perto do seu fim. Poder-se-ia dizer mesmo, que caso conseguisse aquele trabalho, não precisaria de absolutamente mais nada na vida, seria infinitamente realizada (ou pelo menos julgava que seria), seria eternamente feliz, ficaria vitaliciamente satisfeita consigo própria. Tinha sido feita a marcação através de telefonema rico de esperanças e pobre em trato, trato esse que seria capaz de manter à distância a pessoa mais sociável do mundo. Tinha sido perguntado se realmente se chamava Ana Cardoso, e se tinha submetido uma aplicação para designer da empresa em causa, se estaria ainda interessada nesse lugar, se tinha disponibilidade para uma entrevista com um engenheiro de nome bem-parecido no dia seguinte? Ana respondeu sempre em poucas palavras, da forma mais educada e directa que lhe pareceu possível na altura, balbuciando uma ou outra palavra devido à falta de controlo que tinha em relação à felicidade que se fazia expressar por todos os cantos da sua face e do seu ser. Combinada tinha ficado então a entrevista, para a hora logo antes do almoço, pensando rapidamente que a essa hora não teria nada no seu fraco estômago que se pudesse “entornar” em situações mais urgentes provocadas por eventos positivos ou negativos. Essas 12 horas em ponto, eram também uma forma de assegurar que nunca pareceria demasiado ensonada durante a entrevista (o que poderia acontecer caso esta fosse logo a seguir a uma refeição) e de poder canalizar todos os seus olhos e atenções na pessoa que a interrogava e testava os seus ideais, a hora era assim uma garantia para o não falhanço. Para Ana, a escolha da hora ideal, significava sem qualquer dúvida o passo certo para aquele sonho. Não seria certamente por causa de um simples fuso horário que falharia na sua busca de felicidade quase eterna.

Eram 11 horas e 20 minutos quando Ana chegou ao edifício onde iria ser decidido o seu futuro. Por achar que seria mau indicador chegar muito antes da hora marcada (daria segundo ela a impressão de desespero em relação ao quanto queria o trabalho), esperou bastante tempo no lado de fora do edifício, procurando acalmar os nervos, respirar fundo, canalizar pensamentos positivos e descartas pensamentos inimigos da situação. Passaram-se assim então dezenas de minutos, até que finalmente às 11 horas e 51 minutos (portanto 9 minutos antes da hora marcada) Ana ansiosamente se apresentou à eficaz e pouco conversadora secretária daquele que jurava vir a ser o seu futuro patrão:

-Boa tarde! – Começou Ana.

-Boa tarde! Em que posso ajudá-la? – Respondeu a secretária (devia ter à volta de 30 anos).

- O meu nome é Ana Lopes Cardoso… Venho para uma entrevista para o lugar de Designer… - Descreveu-se Ana de forma resumida e rápida, pensando e tentando deixar uma imagem de eficácia e desembaraço.

- Ah…Sim. Pode sentar-se um pouco ali na sala em frente. – Ordenou a secretária de forma fria.

Ana tremeu e dirigiu-se à cadeira mais central da sala de espera, sempre com movimentos muito pouco bruscos para evitar qualquer destabilização na sua suposta paz interior. Foi nessa altura que ouviu novamente a secretária dirigir-lhe a palavra:

- Veio antes da hora marcada! Ainda vai ter que esperar um pouco. O Engenheiro Grimaut só atende à hora marcada…Pensei que lhe tinham referido isso… - Exclamou de forma desagradável, apoiando as palavras numa cara também mal intencionada, fazendo sinal de reprovação com a cabeça, como se fosse seu objectivo reprovar de imediato a ansiosa futura entrevistada.

Como consequência, Ana sentiu-se invadida por uma sensação de mau estar praticamente incontrolável, os nervos escalavam-lhe a espinha sem qualquer dificuldade e pareciam agora querer entrar no cérebro, provocando lutas violentas entre a força de vontade e o medo de falhar. Jurou no entanto para si mesmo, naquele preciso momento, que não se deixaria vencer tão facilmente, engoliu em seco e esperou pacientemente que aqueles minutos arraçados de horas passassem.

- Pode entrar, o Engenheiro está à sua espera! – Ouviu por fim ecoar na fria sala de espera…

Levantou-se e seguiu a secretária até ao escritório onde a sua prova final teria inicio. Quando viu um homem engravatado e com ar importante, tentou a todo o custo sorrir e esboçar simpatia, estendendo a mão e juntando palavras cordiais de “prazer” e “gosto”.

O que se passou nos cerca de 10 minutos seguintes, seria algo fora dos seus piores sonhos, nunca antes tinha sido tão humilhada, nunca antes tinha ouvido ninguém discursar perante si focando esse mesmo discurso apenas nos pontos negativos de a contratar, apontando como defeitos o seu aspecto, a sua ambição ridícula por um cargo que nunca estaria ao seu alcance, o seu aspecto, a sua formação, a sua religião e por fim o facto de ser mulher, numa empresa que ele como fundador tinha formado a pensar especialmente em homens, juntando por fim às criticas uma irónica oferta de emprego para ocupar a vaga inexistente de secretária da empresa a tempo inteiro. Tudo isto em 10 minutos que terão parecido horas, horas sem conseguir dizer uma única palavra, horas em que sentira que nunca lhe tinha sido dada a oportunidade sequer de se apresentar e provar que valia tudo aquilo que o cargo necessitava. Tinham sido 10 minutos de pura humilhação e incineração de sonhos.

Saiu do escritório sem se lembrar de facto de ter saído, só voltaria a si mesma quando tinha sido já abandonada pelos próprios sonhos no meio da rua. Percorreu então centenas de metros de calçada citadina apenas para que alguma parte do seu corpo continuasse a funcionar, sentia o coração a parar de bater, sentia os neurónios a abandonar o cérebro procurando a salvação em alguma parte menos arruinada da sua anatomia. Procurou acordar da vida como se fosse um sonho, mas nem beliscão nem gesto brusco o permitiram.

Terá chorado, terá desejado morrer, terá perdido toda a esperança, ter-se-á dado por vencida, terá olhado em frente e visto um cão branco olhar para si de frente, centrando os pequenos olhos escuros no centro da sua cara. Terá visto o cão piscar-lhe um olho e sorrir-lhe de seguida. Terá pensado que era impossível um cão piscar um olho, e que quanto a sorrir já teria as suas dúvidas. Terá piscado o olho de volta, vendo o cão abanar a cauda e seguir caminho.
Terá também seguido caminho, terá sorrido apesar de ter as suas dúvidas.

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sábado, novembro 10, 2007

"Se conduzir, não beba!!"

O dia era seguramente monótono, era também seguramente quente, com temperaturas a rondar os 32 ou 33 graus que faziam em circunstâncias de campo aberto e sem qualquer sombra, qualquer pessoa desesperar por um qualquer sistema de rega bem intencionado, capaz de salvar o corpo e refrescar a alma.

Armínio é agricultor de tempos livres, quero dizer com isto que nos tempos livres ou fins-de-semana que passa na sua bela e pequena quinta, Armínio cuida da horta, do pomar e mesmo de alguns terrenos ricos em vinhas e cearas de trigo. É portanto um produtor por conta própria, sem ser por conta própria trabalha e sempre trabalhou desde os seus 24 anos (agora teria à volta de 40) num escritória na zona de Leiria, escritório esse de advogados de segunda, apenas eficazes em processos contra companhias de seguros. Mas isto tudo não interessa muito para esta história, devemo-nos focar portanto na segunda vida de Armínio, aquela que é passada no campo sobre sol intenso e oxigénio em quantidades demasiado elevadas.

O dia era portanto quente e parado. No campo em que Armínio se encontrava e à excepção de uns amigos seus agricultores que por ali andavam a ajudá-lo, não se via ninguém, pelo menos ninguém humano, animais viam-se em fartura e mosquitos então, eram tantos que os homens que tratavam a terra frequentemente entravam em desespero e soltavam-lhes ameaças pelo ar, desesperando nomes que não lembravam sequer a pessoas.

Armínio tinha passado naquele mesmo campo a sua última meia duzia de fins-de-semana, preparava as sementes,os locais a semear, os fertilizantes a usar, agendava as tarefas para os próximos meses, encomendava produtos que apenas usaria na colheita, verificava as enchadas e corrigia os seus ajudantes sobre a forma mais ideal de deixar cair a semente na terra. Fazia tudo isto como se a sua vida dependesse disso, nunca antes ningúem tinha visto nele paixão tão intensa como aquela pelo campo e seus derivados. Claramente adorava aquilo, claramente vivia para aquilo, qualquer pessoa mais ou menos perspicaz percebia isso ao observá-lo por curto par de minutos.

Terão andado em todo aquele aparato de semear futuras colheiras durante a manhã toda, sem nunca terem visto outra viva alma passar por ali, nunca estranharam, afinal de contas era domingo, estava provavelmente toda a gente em almoçaradas nas pequenas explanadas da vila que normalmente enchiam nos dias quentes como aquele. Às tantas, e segundo apontava o sol, às 3 da tarde, ouviram um suave assobio ao longe, assobio esse que se aproximou e se tornou num ranger incomodativo. Finalmente quando estava a uma distância possível de observação cuidada, verificaram ser na realidade o guinchar das rodas de uma carroça que se aproximava. A carroça levava claramente peso a mais, daí aquele som irritante e rompedor de tímpanos, no entanto não ia ninguém em cima da mesma. Era estranho! Uma carroça cheia, com um burro atarracado e castrado a puxá-la e sem ningúem a comandar o burro... Quando o veículo se aproximou mais do grupo de agricultores ocasionais, poderam reparar que levava uma velocidade incrível para veículo e puxador tão rudimentares, seguia de facto muito rápido e a própria “chinfrineira” seria de facto uma espécie de súplica por parte das rodas para que alguém as parasse. A essa velocidade passou a carroça à frente daqueles pares de olhos pasmados, e foi então que finalmente puderam observar bem o burro causador de tal barulho e movimentação. Orelhas muito curtas, muito baixo, com passadas curtas mas muito rápidas que quase levavam as pernas a tropeçarem umas nas outras, o mais incrível no animal era no entanto a forma como andava, não era capaz de seguir uma linha recta, ou seguir uma trajectória delimitada pela estrada, ora estava na ervas, ora arrastava consigo searas de trigo, ora voltava para o meio da estrada seguindo depois na direcção oposta. O burro andava de facto aos zigue-zagues, com um olhar louco e desnorteado, mas sempre muito rápido, como se fugisse de alguma coisa...

Fugia de facto de alguma coisa, puderam constactar de facto isso o advogado e os seus amigos agricultores, assim que o burro se afastou levando consigo a carroça, olharam nessa altura para trás e viram aproximar-se deles um homem muito escuro, provavelmente cigano, seguindo numa correria desenfreada na perseguição da carroça, berrando algo que pensaram ser o nome do animal, suplicando para que parasse, insultando pelo meio o mesmo burro e deitando as mãos à cabeça em gestos de desespero incontrolável. Nunca conseguiria apanhar a carroça, pelo menos àquela velocidade, o burro claramente ampliava a vantagem a cada passo que dava.

Por fim quando nada o fazia prever, o burro escorregou e aterrou de focinho no meio de um campo de arroz que delimitava a estrada, virando a carroça e espalhando na estrada toda a carga que transportava. Nessa altura todos conseguiram observar com mais atenção “o tesouro” com que o burro ambicionava fugir.

Estavam então espalhadas mais de uma dezena de pipas de vinho e pela estrada fora um rasto de vinho escorrido marcava agora a trajectória que o desgraçado do burro devia ter seguido na sua corajosa fuga ao cigano. Na berma da estrada estava também um cartaz de uma campanha rodoviária onde se podia ler :
”Se conduzir, não beba!!”

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terça-feira, outubro 30, 2007

À espera do sinal

Nestor conhecera a rapariga há poucos dias, poder-se-ia dizer que realmente nem a conhecia, trocavam olhares, recados e atreviam-se uma ou outra vez a trocar palavras, eram no entanto sentidas essas parcas palavras, sentidas e intensas, como se conhecessem à tempo incalculável, como se as palavras fossem o utensílio usado numa espécie de brincadeira inocente mas com objectivos claros e ambiciosos.

Sempre revelara enorme paixão pelo cinema, sempre levara a sua preciosa câmera de filmar para a rua nos dias de Inverno em que a luz estranha mas mágica parecia marcar todos os objectos com um toque especial, revelando beleza na pedra e no objecto mais banal. Por este facto lembrar-se-ia sempre da primeira vez em que a viu, num dia igual a muitos outros de Inverno, perseguia perspectivas em todos os cantos de prédios e ruas, focando sempre os objectos mais escondidos, aqueles que necessitavam obrigatóriamente de segundo olhar para serem notados. Filmou assim inúmeras cenas centradas na luz natural e movimentada desses objectos, até se cruzar com uma sandália fora do comum, branca e delicada, envolvendo pé estreito e elegante. Dirigiu-se ao seu encontro e só quando reparou que a pessoa que as calçava estava parada à sua frente, levantou a objectiva e centrou-a na sua cara. Assim, ao ser supreendido pela beleza daquele rosto natural que observava através da camera, retirou de imediato o olho da objectiva e embasbacado, olhou e admirou-a nunca se atrevendo a expressar fala sentida e tradutora do que sentia. Foi ela que interrompeu o momento:

-Sim? Posso fazer alguma coisa por si?
Não respondeu, não foi capaz, fixava-se agora nos olhos de cor invulgar.

-Senhor? Está bem?
Voltou a não responder, reparava nos lábios, perfeitos e de uma cor que jurava nunca se ter atrevido a qualificar.

A rapariga achou logo ali piada ao rapaz, estranho mas embasbacado a olhá-la, como se tivesse encontrado na sua pessoa motivo de estudo e admiração. Deixou-se estar durante breves momentos (que foram para ele apenas instantes), brincou com ele, balançou-se de um lado para o outro, sorriu-lhe de vários ângulos, sempre honesta, sempre cheia de graça e cada vez mais razão de vida para o rapaz. Por fim achou que já se tinha “dado” o suficiente e retomou o seu caminho, sussurrando-lhe um adeus melodioso e hipnotizante.
Ele apercebeu-se do fim e não o aceitou, reagindo rapidamente como se fosse louco:

- Espera!! Espera!!
- Sim?? – Respondeu ela.
- ham...ah... poderia admirar o teu nome? Se mo dissesses?
- Poderás! Margarida... Albuquerque.
- Claro...Margarida faz sentido, poderia ter sonhado nome como esse.

Margarida voltou a achar-lhe piada, pelo menos entretia-se com ele, era educado, não demasiado, mas educado de forma agradável, com palavras fora do comum, com reacções de apaixonado, isso deliciava-a.

Demoraram-se dias não contados, até que um dos dois lançasse a iniciativa.
Foi Margarida que numa destas conversas de passagem finalmente o fez:
- Poderias-me oferecer um café...Se fizeres questão... – Emitindo o pedido em forma de ordem.

Ele obedeceu de imediato, procurando escolher o local que estivesse mais de acordo com ela. Não o encontrou, e tendo noção que não teria muito tempo, decidiu-se por um café recolhido e agradavelmente situado no meio de um jardim verde e em plena germinação .
A conversa fluiu, primeiro falava ela, sempre em tons de majestade, de forma consonante com os seus gestos e com a sua beleza. Ele ouviu-a, sempre em pleno estado de adoração, cada vez mais apaixonado, cada vez mais incapaz de se controlar na partilha de conhecimentos, poemas, livros, filmes.
Passaram assim algum tempo, ele deu-se como rendido a ela e pareceu Margarida ter-se rendido também ao seu adorador, dando-lhe beijo na face como prova disso, despedindo-se com frase inspiradora e crescente de esperança:

- Hoje à noite, vai até a minha rua, senta-te no banco ao lado da fonte, olha a terceira janela, espera pela luz, assim que a vires toca à porta que ela se abrirá...


Invadiu-se o coraçao do apaixonado, sentiu-se incapaz de emoções, possuído pela esperança e pela expectativa.
Apareceu na fonte, ainda antes do sol se pôr, jurou nunca ter desejado alguém de igual forma. Esperou, olhando a janela ainda com o sol por cima, sabendo sempre que tinha que esperar pela noite, não se contentando nunca em olhar para outro lado. Fez-se a hora, fizeram-se o par de horas, o sol desceu, escondendo-se atrás do prédio revelando quase em simultâneo a lua e o vento gélido que a acompanhou.

Chegou a hora.
Ele olhou para cima e não viu luz na pequena janela do quarto. Ansiava por ela, todo ele se movia por aquela luz de presença com significado escondido e poderoso. Mas nada! O quarto permaneceu no seu olhar durante horas, escuro como a derrota, sombrio como a decepção, negro como a noite fria que o invadia dos pés à ponta do cabelo, mantendo o corpo vivo apenas por consideração ao coração.

Passou assim a noite, até o frio levar com ele todo o corpo do apaixonado, à excepção do coração, que ali ficou para sempre, à espera do sinal.

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sexta-feira, outubro 26, 2007

12 horas em ponto

Noite na cidade, os vidros do prédio em que nos centramos reflectem a pouca luz de uma lua desfalecida. No interior do 3º andar o apartamento está todo às escuras, inundado apenas por essa luz fraca e constante.
No quarto encontramos Mário, deitado na sua cama, pouco coberto pelos lençois, não está imóvel, longe disso, está irrequieto e provocador de gemidos, murmura violentos discursos pelo canto da boca praticamente cerrada numa espécie de reacção ao indesejado, como se temesse algo e não o podesse controlar.
Mário está no meio de um sonho, e durante todo esse tempo encontra-se numa realidade diferente, ao que parece um mundo fantasiado mas temido, um mundo em que encontra todos os seus medos e recorda as saudades mais frágeis e mortas, está num mundo com vida própria, que se incorpora e revela a cada desejo ou lembrança revelada pela mente.
Aos poucos qualquer pessoa que o ouvisse perceberia pelos seus relatos a situação em que se sonha:


É dia bem iluminado e encontra-se em casa, toda as paredes têm cores variadas, ora vivas, ora doentias e deprimentes. Ele procura o casaco, um casaco específico. Chega ao quarto e para onde quer que dirija o olhar só vê casacos não pretendidos, todos eles se parecem mover como que suplicando para serem os escolhidos a vesti-lo, alguns falam com ele, desejam-lhe bom dia, dizem que ele está com bom aspecto, outros dançam ou movimentam-se pelo ar, há mesmo um casaco que tem a manga direita para cima, como se tentasse motivar a escolha com um dedo no ar, dedo esse inexistente. Todos procuram a sua distracção, todos o tentam fazer esquecer do seu objectivo. A busca é intensa, onde está o casaco castanho? Não o encontra, vai ter de sair sem casaco. Olha para o pulso e não tem relógio, em vez disso as horas estão-lhe cravadas na pele, os ponteiros em sintonia, entrelaçados um no outro apontam a direito as 12 horas, nem mais minuto, nem menos minuto.
Apressa-se e inicia corrida ao longo do apartamento, tem que sair rápidamente ou vai chegar atrasado. Aproxima-se da sala e procura a porta que dá para o exterior, mas esta não está no sítio em que sempre se encontra, mudou de sítio, Mário quase desespera. Faz depois, percurso de 360º com os olhos em toda a sua volta, a início não vê qualquer porta, até as que dão para o quarto e para a cozinha desapareceram, onde antes se encontravam restam apenas as marcas na parede. Motiva-se novamente a olhar todas as paredes com mais atenção, repara agora em portas nunca antes vistas, todas elas ligeiramente abertas e à espera de serem empurradas. Com o pé e numa forma de desespero abre-as e espreita o destino de cada uma. Todas elas são entradas para memórias e situações vividas anteriormente. Revê velhos amigos, situações embaraçosas na escola quando era muito miúdo, o dia em que entrou no curso, até os seus avôs maternos estão lá, numa porta bem antiga e quebrada em vários sítios. Sente-se consumido pela saudade e pelo desgosto, gostava muito de voltar a entrar por grande parte das portas e dava tudo para manter fechadas muitas outras. Sente-se então a desmaiar e as pernas recusam-se a ficar esticadas, tomba de joelhos e leva as mãos ao rosto em desespero, é então que sente junto à sua face um bafo quente, reconhece-o e tenta resistir à tentação da vista, sente o pelo de uma criatura tocar-lhe a cara e de repente uma lambidela humida na mão. Levanta a cabeça e olha o seu cão de infância, provavelmente tinha entrado por uma das primeiras portas, o coitado terá visto o dono esquecido há anos e não resistiu. Mário pega no osso que ele segura na boca e de imediato o cão responde com um abanar violento de cauda que quase o desequilibra, atira-o pelo ar fazendo pontaria a uma das portas e o cão de imediato volta ao local de onde veio, sem antes ladrar ao dono uma última vez em jeito de felicidade.
Recuperado levanta-se e repara numa porta à sua frente que não abre completamente, faz força e apoia todo o seu peso na porta de forma a deixá-la escancarada, mas não consegue, a porta não abre por nada. Decide então espreitar pelo canto entreaberto da mesma, do outro lado só vê escuro, não, está lá mais qualquer coisa! Destaca uma cara no meio da escuridão, não é familiar mas de alguma forma fá-lo sentir seguro.
Tenta ajeitar-se melhor para centrar o olhar na cara da rapariga, mas sente o seu pulso tremer, parece estar a ganhar vida própria, só passado breve desespero percebe que são as horas cravadas na pele que assinalam novamente as 12 em ponto, todo ele treme, como se fosse um despertador...

O despertador está a tocar, pensa Mário ainda a dormir, o despertador está a tocar, pensa Mário já meio acordado, toca mais uma vez e Mário finalmente acorda. Que sonho estranho. Lembra-se do cão, tem saudades daquele cão, as caras dos avós pairam na sua cabeça, há muito tempo que não se lembrava deles tão claramente.
Levanta-se finalmente e após rápido duche veste-se também à pressa, não pode chegar atrasado outra vez. Coloca o relógio no pulso e tenta-se lembrar onde pôs o casaco, na sala percorrida entretanto não está, no quarto também não, lembra-se finalmente que não chegou com ele a casa, deixou-o muito provavelmente em casa dos pais no dia anterior, falaram de tanta coisa ao jantar, acha que os avós foram também tema de recordações. Memórias bem vindas sem dúvida.

Sai de casa sem casaco, está calor na rua, também não é preciso outro. Começa a percorrer os 3 quarteirões que o levam ao emprego e de repente, na rua inundada por gente matinalmente resmungona, parece-lhe ver em duas faces passantes, a cara dos avós, jura aliás que os viu, eram mesmo eles. Olha para trás e vê os dois velhinhos que acabaram de passar por ele a afastarem-se no sentido contrário, segue-os à distância para não parecer um louco, com certeza eram só duas caras associadas ao sonho. Eles entraram num autocarro, ele entrou também. Sentaram-se os dois lá ao fundo, Mário ficou nos lugares junto à porta. Olhou-os, eram de facto muito parecidos, foi então que sentiu um bafo quente na perna, lembrou-se do seu cão e virou-se de imediato, era tal e qual o seu, mesma raça, mesma cor e o mesmo ar descontraído de quem está prestes a aprontar alguma.
Olhou várias vezes o cão e os dois passageiros sentados ao fundo, tudo tão estranhamente familiar, olhou então em frente pela porta meia aberta do autocarro e viu lá fora no meio da claridade o mesmo rosto tranquilizador do sonho, agora sim bem visível, bem bonito, bem ansioso de o conhecer.
Saiu do autocarro e foi ao seu encontro, deixando os outros três pedaços de sonho continuarem a viagem.

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