segunda-feira, novembro 12, 2007

Cão branco

Ana levantou-se naquele dia de peito aberto para o mundo.

Tinha então no dia anterior, marcado para o dia actual, uma entrevista para um trabalho que perseguia há muito tempo, um sonho de uma vida que agora finalmente tinha hipótese de ser realizado, o concluir de todas as suas aspirações e esforços. Tudo na sua vida tinha sido feito a pensar num determinado objectivo e aquela entrevista, representava “apenas” a última etapa antes da meta, o último passo para o sonho, o último passo para a vida que queria levar até perto do seu fim. Poder-se-ia dizer mesmo, que caso conseguisse aquele trabalho, não precisaria de absolutamente mais nada na vida, seria infinitamente realizada (ou pelo menos julgava que seria), seria eternamente feliz, ficaria vitaliciamente satisfeita consigo própria. Tinha sido feita a marcação através de telefonema rico de esperanças e pobre em trato, trato esse que seria capaz de manter à distância a pessoa mais sociável do mundo. Tinha sido perguntado se realmente se chamava Ana Cardoso, e se tinha submetido uma aplicação para designer da empresa em causa, se estaria ainda interessada nesse lugar, se tinha disponibilidade para uma entrevista com um engenheiro de nome bem-parecido no dia seguinte? Ana respondeu sempre em poucas palavras, da forma mais educada e directa que lhe pareceu possível na altura, balbuciando uma ou outra palavra devido à falta de controlo que tinha em relação à felicidade que se fazia expressar por todos os cantos da sua face e do seu ser. Combinada tinha ficado então a entrevista, para a hora logo antes do almoço, pensando rapidamente que a essa hora não teria nada no seu fraco estômago que se pudesse “entornar” em situações mais urgentes provocadas por eventos positivos ou negativos. Essas 12 horas em ponto, eram também uma forma de assegurar que nunca pareceria demasiado ensonada durante a entrevista (o que poderia acontecer caso esta fosse logo a seguir a uma refeição) e de poder canalizar todos os seus olhos e atenções na pessoa que a interrogava e testava os seus ideais, a hora era assim uma garantia para o não falhanço. Para Ana, a escolha da hora ideal, significava sem qualquer dúvida o passo certo para aquele sonho. Não seria certamente por causa de um simples fuso horário que falharia na sua busca de felicidade quase eterna.

Eram 11 horas e 20 minutos quando Ana chegou ao edifício onde iria ser decidido o seu futuro. Por achar que seria mau indicador chegar muito antes da hora marcada (daria segundo ela a impressão de desespero em relação ao quanto queria o trabalho), esperou bastante tempo no lado de fora do edifício, procurando acalmar os nervos, respirar fundo, canalizar pensamentos positivos e descartas pensamentos inimigos da situação. Passaram-se assim então dezenas de minutos, até que finalmente às 11 horas e 51 minutos (portanto 9 minutos antes da hora marcada) Ana ansiosamente se apresentou à eficaz e pouco conversadora secretária daquele que jurava vir a ser o seu futuro patrão:

-Boa tarde! – Começou Ana.

-Boa tarde! Em que posso ajudá-la? – Respondeu a secretária (devia ter à volta de 30 anos).

- O meu nome é Ana Lopes Cardoso… Venho para uma entrevista para o lugar de Designer… - Descreveu-se Ana de forma resumida e rápida, pensando e tentando deixar uma imagem de eficácia e desembaraço.

- Ah…Sim. Pode sentar-se um pouco ali na sala em frente. – Ordenou a secretária de forma fria.

Ana tremeu e dirigiu-se à cadeira mais central da sala de espera, sempre com movimentos muito pouco bruscos para evitar qualquer destabilização na sua suposta paz interior. Foi nessa altura que ouviu novamente a secretária dirigir-lhe a palavra:

- Veio antes da hora marcada! Ainda vai ter que esperar um pouco. O Engenheiro Grimaut só atende à hora marcada…Pensei que lhe tinham referido isso… - Exclamou de forma desagradável, apoiando as palavras numa cara também mal intencionada, fazendo sinal de reprovação com a cabeça, como se fosse seu objectivo reprovar de imediato a ansiosa futura entrevistada.

Como consequência, Ana sentiu-se invadida por uma sensação de mau estar praticamente incontrolável, os nervos escalavam-lhe a espinha sem qualquer dificuldade e pareciam agora querer entrar no cérebro, provocando lutas violentas entre a força de vontade e o medo de falhar. Jurou no entanto para si mesmo, naquele preciso momento, que não se deixaria vencer tão facilmente, engoliu em seco e esperou pacientemente que aqueles minutos arraçados de horas passassem.

- Pode entrar, o Engenheiro está à sua espera! – Ouviu por fim ecoar na fria sala de espera…

Levantou-se e seguiu a secretária até ao escritório onde a sua prova final teria inicio. Quando viu um homem engravatado e com ar importante, tentou a todo o custo sorrir e esboçar simpatia, estendendo a mão e juntando palavras cordiais de “prazer” e “gosto”.

O que se passou nos cerca de 10 minutos seguintes, seria algo fora dos seus piores sonhos, nunca antes tinha sido tão humilhada, nunca antes tinha ouvido ninguém discursar perante si focando esse mesmo discurso apenas nos pontos negativos de a contratar, apontando como defeitos o seu aspecto, a sua ambição ridícula por um cargo que nunca estaria ao seu alcance, o seu aspecto, a sua formação, a sua religião e por fim o facto de ser mulher, numa empresa que ele como fundador tinha formado a pensar especialmente em homens, juntando por fim às criticas uma irónica oferta de emprego para ocupar a vaga inexistente de secretária da empresa a tempo inteiro. Tudo isto em 10 minutos que terão parecido horas, horas sem conseguir dizer uma única palavra, horas em que sentira que nunca lhe tinha sido dada a oportunidade sequer de se apresentar e provar que valia tudo aquilo que o cargo necessitava. Tinham sido 10 minutos de pura humilhação e incineração de sonhos.

Saiu do escritório sem se lembrar de facto de ter saído, só voltaria a si mesma quando tinha sido já abandonada pelos próprios sonhos no meio da rua. Percorreu então centenas de metros de calçada citadina apenas para que alguma parte do seu corpo continuasse a funcionar, sentia o coração a parar de bater, sentia os neurónios a abandonar o cérebro procurando a salvação em alguma parte menos arruinada da sua anatomia. Procurou acordar da vida como se fosse um sonho, mas nem beliscão nem gesto brusco o permitiram.

Terá chorado, terá desejado morrer, terá perdido toda a esperança, ter-se-á dado por vencida, terá olhado em frente e visto um cão branco olhar para si de frente, centrando os pequenos olhos escuros no centro da sua cara. Terá visto o cão piscar-lhe um olho e sorrir-lhe de seguida. Terá pensado que era impossível um cão piscar um olho, e que quanto a sorrir já teria as suas dúvidas. Terá piscado o olho de volta, vendo o cão abanar a cauda e seguir caminho.
Terá também seguido caminho, terá sorrido apesar de ter as suas dúvidas.

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu

6:15 da manhã  

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