terça-feira, novembro 13, 2007

Campeões do Mundo

A cidade acordou em desassossego, por todo o lado se viam carros energéticos, quase todos apitavam, quase todos o faziam numa espécie de celebração e nem os habituais condutores inquietados de transportadoras faziam das suas carrinhas armas de combate a rotundas e cruzamentos (como era hábito matinal dos dias úteis). Em vez disso, lá aderiam também eles com fortes buzinadelas em nome da causa comum. Por todo o lado e desde bem cedo se inundavam as ruas. Qualquer rosto percorrido parecia esgotar de felicidade e entre corredores regulares e gente caseira transformada em transeunte, ninguém parecia afectado por ter de trabalhar ou esperar transportes públicos. Ninguém era representante do habitual equilíbrio entre tristeza e felicidade matinal. Toda a cidade representava assim espaço anormalmente desequilibrado, uma espécie de balança em que o lado da felicidade pesava sempre mais que o lado oposto, por mais pesos que se fossem adicionando em compensação.

Tudo encadeado por causa comum, uma representação desportiva do país que correra francamente bem e que contra todos os prognósticos (a não ser os de gozo), se fazia agora idolatrar por chegar ao jogo final de um campeonato mundial. Feito único e nunca antes vivido por gente tão repentinamente nacionalista. Assim se justificava a disposição geral de uma cidade que era apenas réplica de todas as outras pelo país fora (e de algumas outras estrangeiras mas contudo altamente “nacionais”). Assim se justificavam os sorrisos rasgados, as piadas sobre nações derrotadas, os carros e as casas pintadas pelas cores beijadas e com essas mesmas cores as bandeiras, duas ou três por varanda, mais duas ou três nos vidros das marquises, até algumas mais que chegavam a pintar veículos e a nascerem de tubos de escape fugidos à inspecção. Até os sinais pareciam colaborar, ora verdes, ora encarnados, ora esporadicamente amarelos, tudo em sintonia genuína, sincera e nacional, esperando fazer balançar a equipa para o passo final, fazer de todos campeões do mundo.

Com a chegada da hora do jogo, todas as televisões e rádios parecem ter promoções especiais, oferecem bilhetes, camisolas, qualquer tipo de semblante de cores certas, tudo em troca de hinos cantados antecipadamente ou prognósticos irrealistas de vitórias por 10 a 0. Senhoras de idade e vendedores ambulantes gritam nas ruas o nome apetecido, intercalam-no com camisolas vermelhas a preços também eles irrealistas, dão a conhecer as promoções e as vantagens da compra e logo de seguida novamente, justificam-se em nome da pátria. Foram mesmo colocados em localizações centrais e monumentos simbólicos, relógios gigantes em contagem decrescente, em que cada hora, cada minuto e cada segundo parece deixar quem os olha mais ansioso e mais português.

As portas do estádio da final, abrem-se umas quatro horas antes da final. Felizardos com bilhetes regateados a preço de diamante ocupam as cadeiras de imediato e imaginam na relva verde e bem tratada, os lances mágicos, condicionantes e causadores da explosão nacional. Tudo vai correr bem, nem um adepto dúvida nesse aspecto, nem mesmo os que costumam espreitar em casa os jogos pelo canto do olho, argumentando que não gostam de futebol e que não tem qualquer sentido tudo o que o rodeia e se move por ele e com ele. Casais de namorados fazem também do estádio o seu teatro favorito para o romance, dizem palavras melodiosas uns aos outros e mesmo parecendo não abordar o tema da “bola”, sonham sempre com o momento em que a bola entra na rede, momento esse a ser celebrado com justificado romantismo nunca antes conseguido. Viva Portugal!

Um rapaz compenetrado nas suas memórias tenta-se lembrar de como nasceu a sua paixão pelo futebol. Veio ao futebol com o pai e lembra-se que sempre o fez desde pequeno, tem também a certeza que passará esse hábito ao seu filho, mas nunca se lembra do primeiro momento em que o amor o levou a ir ao estádio apoiar a carne e o osso dos jogadores. Sabe que a paixão pela selecção não é como as dos clubes. Amor à selecção caracteriza-se por um amor comum a toda a gente que fala a mesma língua e se entende pela mesma cultura, não há sotaques, não há guerras entre cidades conterrâneas. Todos sofrem pelo mesmo, todos atingem o grau de loucura exactamente ao mesmo tempo e inundam-se de tristeza pelo mesmo motivo. Em nenhuma outra altura isto é possível, o teatro tenta fazê-lo, o cinema também, a música anda lá perto, mas apenas o futebol o consegue.

O jogo está a momentos de começar, o estádio ferve de emoções, milhares e milhares de desconhecidos quando colocados lado a lado parecem conhecerem-se desde sempre, riem juntos, declamam poesia juntos, cantam o hino com a voz do coração e sentem-no mesmo a palpitar mais forte. 60 mil almas no local arrepiam-se exactamente no mesmo instante que milhões de almas o fazem em casa, à distância da televisão.

O jogo começa e sente-se no ar a certeza. No fim destes 90 minutos, somos todos campeões do mundo.

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