quarta-feira, janeiro 02, 2008

Vapor e Natalidade

Não adoecia há um ano, lembro-me perfeitamente desse facto, provavelmente até me tinha gabado disso a alguém, antes de me aperceber que podia dar azar comemorar e dar a conhecer essa condição ao mundo. Já devia saber que um ano era muito tempo sem adoecer, já não era natural tanto tempo são de saúde, abusei da sorte e terei andando ao ar livre menos agasalhado da cintura para cima do que o recomendável para as condições atmosféricas, terei pensado provavelmente que nunca mais algum vírus entraria por mim a dentro. Teoria pensada e imediatamente invalidada, começando por uma pequena dor de garganta ao fim da noite, uma impressão na laringe, algo incomodativo ao engolir. Passou para uma inflamação séria na garganta mal acordei na manhã seguinte, e num curto prazo de 2 dias evoluiu para uma virose forte e condicionadora extrema de uma respiração eficaz. Dificuldade ao respirar, tosse que fazia lembrar uma criatura de tempos assustadores e arrepios pela espinha a deixarem perceber que a temperatura no corpo já tinha subido mais do que seria desejável. Não demorou muito tempo a atingir um ponto de saturação e incapacidade física para a vida. Levei-me então ao hospital, aliás, ter-me-ão levado ao hospital, de ambulância e tudo tal era a dificuldade a inspirar e expirar. Tinha demorado um ano, o vírus tinha sido tardio, mas agora vingava-se com uma eficácia desconfortante.

Passei a noite nas urgências, um programa do qual não sentia saudades. Inalei soro em vapor até as mucosas escorrerem pelo nariz em forma de água e após duas horas de nevoeiro contínuo ao nível nasal, recuperei a respiração estável, interrompida apenas por ataques de tosse que pareciam querer provocar uma avalanche em que a cabeça era a bola de neve e as costas a colina a descer. Ao fim de uma meia dúzia de horas encontrava-me então finalmente próximo da normalidade em termos pulmonares e capaz de articular um discurso desde que este não fosse rico em palavras longas.

Escusado será dizer que tinha passado dois terços desta meia dúzia de horas, em salas de espera de um hospital que rebentava pelas costuras, onde vi todo o tipo de gente a chegar em alvoroço. Exigiam tratamentos imediatos de queimaduras de 1º ou 3º grau, ou de dores de cabeça que “não os deixavam dormir”, ou de cortes profundos em que já tinha sido perdido muito sangue. Uns exageravam outros desdramatizavam, todos procuravam auxílio e atenção.

Toda esta movimentação me recambiou para um sala secundária em que me colocaram então “excepcionalmente” a um canto, sentado numa cadeira, inclinando o nariz e a boca sobre o vapor. Terei ficado ali mais de uma hora, até que o barulho do expelir do fumo foi abafado pelos gritos de uma mulher à entrada do hospital. Consegui perceber que estava grávida e pronta a trazer o novo membro da família ao mundo. A princípio negaram-lhe o atendimento, disseram que não tinham unidade de partos no hospital, que não podiam trazer o bebé ao mundo naquele hospital. O marido então respondeu que o filho ou nascia numa marquesa, ou nascia na sala de espera e que dali não tirava a mulher, que a função dos médicos e dos enfermeiros era fazer a criança nascer e que “com certeza, alguém aqui já fez um parto!”. Por fim lá apareceu um médico mais sensato e a iminente mãe foi levada para a mesma sala em que me tinham a mim. O marido tanto dava graças aos céus pela amabilidade exigida que pouco se importou com a minha presença, nem sei ao certo se terá reparado em mim, era naturalmente mais evidente a cabeça do filho que parecia querer espreitar a sala antes de ser convidado, do que a minha, semi-escondida no meio do vapor.

Todo aquele processo de natalidade foi mais rápido do que eu poderia imaginar e ao fim de uma hora em que os gritos femininos tendiam a maximizar o volume possível de som na sala, já o bebé estava cá fora, retirado do interior da mãe como que denunciando a falta de espaço de que dispunha para esticar as pernas. Assim que chegou cá fora o novo habitante da Terra foi açoitado levemente e o seu primeiro choro invadiu de forma mágica a maternidade improvisada. Quando olhei à minha volta, os enfermeiros congratulavam-se uns aos outros, denunciando a provável falta de hábito em situações semelhantes.

Foi então que após percorrer vários braços médicos, o bebé foi finalmente colocado no leito formado pelos braços da desgastada mãe, e foi aí que pude ver a felicidade extrema nos olhos de uma pessoa. Aquela felicidade que todos nós lutamos por atingir, todo os dias da nossa vida.

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1 Comments:

Blogger Mariana said...

essa ideia está escrita na Bíblia, sabes? =)

7:01 da tarde  

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