O Rei do Recreio
Mas por mais que todas as brincadeiras ou aventuras imaginadas constituíssem a principal razão de viver de todo aquele infantário, houve naquela época um longo período de tempo dominado por um inocente e desafiador desabafo infantil. Deu-se esse, quando certo dia um rapaz de pequena estatura referiu a outro, que tinha como boleia de fim do dia um Ferrari vermelho…
- O meu avô hoje vem-me buscar!
- Que carro tem o teu avô?
- Tem um carro vermelho que é muito rápido!
- O carro do meu pai é azul, mas é melhor que o do teu avô! E anda mais depressa!
- Não anda não! O meu avô tem um Ferrari! E hoje vem-me buscar nele!
Foi depois desta revelação surpreendente que todo o jovem aglomerado que povoava o recreio se reuniu em volta do seu novo herói momentâneo. Interromperam-se corridas por títulos supremos, interromperam-se intensas batalhas pela conquista do castelo (ou árvore, dependendo da imaginação de cada um), interromperam-se todas e qualquer tipo de brincadeiras, houve mesmo castelos de areia que foram desmanchados pelos pés dos curiosos, e espadas que foram perdidas no meio de toda aquela confusão. Ninguém acreditava ou queria acreditar realmente na existência do Ferrari vermelho, mas também ninguém se atrevia a duvidar em voz alta de tão poderosa revelação, tudo porque segundo o revelador, iriam todos ter oportunidade no fim daquele dia, de ver com os próprios olhos o carro tão imaginado e venerado. Aí sim, se verificaria se era realmente verdade, ou se tratava apenas de um rapaz mentiroso em busca da maior fama possível.
O fim da tarde chegou, os carros começaram a estacionar na parte da frente do infantário e os pais começaram a levar os filhos para casa, estes refilavam, suplicavam e pediam aos graúdos para esperarem mais algum tempo, eles queriam ver o carro, queriam ver o prometido avô a chegar. Os pais não os atendiam, arrastavam-nos para dentro do carro, alguns faziam cara feia e os pequenos lá obedeciam cheios de pena, outros aplicavam um raspanete mais pesado e o filho não tinha outra alternativa a não ser fazer-lhe a vontade, entrava no carro e agarrava-se ao vidro de trás na esperança de ainda poder ver o momento em que o carro vermelho finalmente apareceria. Até que chegada a altura, restavam apenas uma meia dúzia de testemunhas no local, 6 rapazes com a ânsia acumulada de todos os outros. O avô finalmente apareceu, o neto identificou-o mal viu um Renault 21 cinzento a virar a esquina antes de se aproximar do parque de estacionamento, mas permaneceu sempre calado, nunca quis denunciar a mentira antes de ser estritamente necessário, antes de se aperceber que não teria mais nenhuma alternativa senão dizer a verdade.
O avô saiu do carro e olhou de imediato para o seu neto, fechou a porta e iniciou marcha na direcção da entrada, à medida que se ia aproximando do desgraçado e mentiroso neto o seu rosto ia sorrindo cada vez mais, em disposição inversa estava o rosto do rapaz, que era cada vez mais pesado e denunciado. Foi então que quando todos se começavam a aperceber da mentira e ele se preparava para revelar toda a verdade, que o avô em vez de dar um habitual e desastroso beijo, estendeu a mão na direcção do neto…
- Menino! Como está? O seu avô mandou-me vir buscá-lo! Pede-lhe desculpa mas não conseguiu cá vir pessoalmente porque teve que levar o Ferrari à oficina!
Disse em sorrisos cumprimentando cordialmente o neto. Este ao ouvir estas palavras mágicas virou-se para trás e exibiu para as testemunhas um sorriso glorioso, digno de rei. Os outros não queriam acreditar.
Nos dias seguintes ao acontecimento a notícia espalhou-se por todos os cantos do recreio para permanecer viva no imaginário das crianças daquele infantário durante muito e longo tempo. E sempre que o tempo provocava novas dúvidas, ou alguém novo punha em causa a existência do Ferrari, o avô arranjava forma de dissipar as dúvidas na cabeça de todos os pequenos ingénuos, e assim, durante longo tempo, o avô fez do neto, o rei do recreio.
1 Comments:
desculpa priminho... não tenho comentado nada, mas tenho vindo a ler embora, enfim, devesse lê-las com mais descanso... parecem-me bem interessantes. =) tens cá um dom!
e tu tb, joão! =)
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