domingo, dezembro 09, 2007

O Rei do Recreio

Estavam todos sentados e irrequietos nos seus bancos, esperavam, ansiavam pelo toque da habitual campainha, o toque da liberdade que os fazia levantarem-se em algazarra incontrolável e dirigirem-se de forma urgente e dinâmica para o pátio das centenas de histórias. Todos muito pequenos e em frenética correria pelos corredores do infantário, esquivando-se dos funcionários que tentavam limpar os corredores outrora brilhantes e calmos. Todos em delirantes velocidades, fazendo esvoaçar as folhas caídas pelo Outono que povoavam o recreio. Perto da porta que lhe dava acesso, formava-se mesmo regularmente um agregado especialmente intenso de folhas e todos os dias o primeiro a passar por elas era considerado e coroado como uma espécie de rei, transformando-se ele próprio numa espécie de árvore intensamente revestida pelas folhas caídas das suas colegas de espécie. O pátio de todas as brincadeiras e espaço sonhado pelos pequenos alunos durante todas as horas que estes passavam de facto a instruir-se no interior das salas, era constituído por uma arena em que o chão era feito de areia de praia e os pequenos muros de tijolo vermelho e desgastado (servindo esse muro, como rampa de lançamento para foguetões ou como prancha para concursos de mergulhos), por um percurso delimitado em torno dessa mesma arena e por uma árvore de enormes dimensões mesmo a meio desse percurso. Era comum que ao longo de todo o percurso em volta da arena se observasse constantemente corridas frenéticas que tinham como intervenientes os vários miúdos “supersónicos” que transformavam o trajecto numa pista de carros ou motas. Essas corridas eram normalmente interrompidas por quedas a meio do percurso, era o preço a pagar pelo facto da pista apenas ser delimitada por zona rica em partículas arenosas, altamente propiciadores desse tipo de deslizes acentuados. Não havia joelho ou calças que resistissem, de tal forma que as mães estranhariam caso os filhos chegassem a casa vestidos sem qualquer buraco, pensariam que não teriam amigos, que se estariam a integrar mal no infantário, que seriam alvos de qualquer malvadez comportamental infantil e que certamente o seu filho passaria os intervalos sozinho fechado na casa de banho ou na sala. Ter o joelho a sangrar, era portanto naquele infantário, sinal supremo que a criança tinha amigos, brincadeiras e que sem sombra de quaisquer dúvidas se divertia. No entanto e por trás de toda a imaginação utilizada pelos pequenos naquele recreio, estava sempre a enorme e longa vivida árvore. Era uma espécie de centro de todo aquele recreio, era sempre o local mais importante, o castelo do rei, a máquina do tempo, o vai e vem espacial, o quartel da polícia, era o infinito imaginário das várias crianças, era tudo, tudo menos uma simples e gigantesca árvore velha.

Mas por mais que todas as brincadeiras ou aventuras imaginadas constituíssem a principal razão de viver de todo aquele infantário, houve naquela época um longo período de tempo dominado por um inocente e desafiador desabafo infantil. Deu-se esse, quando certo dia um rapaz de pequena estatura referiu a outro, que tinha como boleia de fim do dia um Ferrari vermelho…

- O meu avô hoje vem-me buscar!

- Que carro tem o teu avô?

- Tem um carro vermelho que é muito rápido!

- O carro do meu pai é azul, mas é melhor que o do teu avô! E anda mais depressa!

- Não anda não! O meu avô tem um Ferrari! E hoje vem-me buscar nele!

Foi depois desta revelação surpreendente que todo o jovem aglomerado que povoava o recreio se reuniu em volta do seu novo herói momentâneo. Interromperam-se corridas por títulos supremos, interromperam-se intensas batalhas pela conquista do castelo (ou árvore, dependendo da imaginação de cada um), interromperam-se todas e qualquer tipo de brincadeiras, houve mesmo castelos de areia que foram desmanchados pelos pés dos curiosos, e espadas que foram perdidas no meio de toda aquela confusão. Ninguém acreditava ou queria acreditar realmente na existência do Ferrari vermelho, mas também ninguém se atrevia a duvidar em voz alta de tão poderosa revelação, tudo porque segundo o revelador, iriam todos ter oportunidade no fim daquele dia, de ver com os próprios olhos o carro tão imaginado e venerado. Aí sim, se verificaria se era realmente verdade, ou se tratava apenas de um rapaz mentiroso em busca da maior fama possível.

O fim da tarde chegou, os carros começaram a estacionar na parte da frente do infantário e os pais começaram a levar os filhos para casa, estes refilavam, suplicavam e pediam aos graúdos para esperarem mais algum tempo, eles queriam ver o carro, queriam ver o prometido avô a chegar. Os pais não os atendiam, arrastavam-nos para dentro do carro, alguns faziam cara feia e os pequenos lá obedeciam cheios de pena, outros aplicavam um raspanete mais pesado e o filho não tinha outra alternativa a não ser fazer-lhe a vontade, entrava no carro e agarrava-se ao vidro de trás na esperança de ainda poder ver o momento em que o carro vermelho finalmente apareceria. Até que chegada a altura, restavam apenas uma meia dúzia de testemunhas no local, 6 rapazes com a ânsia acumulada de todos os outros. O avô finalmente apareceu, o neto identificou-o mal viu um Renault 21 cinzento a virar a esquina antes de se aproximar do parque de estacionamento, mas permaneceu sempre calado, nunca quis denunciar a mentira antes de ser estritamente necessário, antes de se aperceber que não teria mais nenhuma alternativa senão dizer a verdade.

O avô saiu do carro e olhou de imediato para o seu neto, fechou a porta e iniciou marcha na direcção da entrada, à medida que se ia aproximando do desgraçado e mentiroso neto o seu rosto ia sorrindo cada vez mais, em disposição inversa estava o rosto do rapaz, que era cada vez mais pesado e denunciado. Foi então que quando todos se começavam a aperceber da mentira e ele se preparava para revelar toda a verdade, que o avô em vez de dar um habitual e desastroso beijo, estendeu a mão na direcção do neto…

- Menino! Como está? O seu avô mandou-me vir buscá-lo! Pede-lhe desculpa mas não conseguiu cá vir pessoalmente porque teve que levar o Ferrari à oficina!

Disse em sorrisos cumprimentando cordialmente o neto. Este ao ouvir estas palavras mágicas virou-se para trás e exibiu para as testemunhas um sorriso glorioso, digno de rei. Os outros não queriam acreditar.

Nos dias seguintes ao acontecimento a notícia espalhou-se por todos os cantos do recreio para permanecer viva no imaginário das crianças daquele infantário durante muito e longo tempo. E sempre que o tempo provocava novas dúvidas, ou alguém novo punha em causa a existência do Ferrari, o avô arranjava forma de dissipar as dúvidas na cabeça de todos os pequenos ingénuos, e assim, durante longo tempo, o avô fez do neto, o rei do recreio.

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1 Comments:

Blogger Mariana said...

desculpa priminho... não tenho comentado nada, mas tenho vindo a ler embora, enfim, devesse lê-las com mais descanso... parecem-me bem interessantes. =) tens cá um dom!

e tu tb, joão! =)

12:52 da manhã  

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