segunda-feira, novembro 26, 2007

Batalha nas sombras

A sala estava parcialmente iluminada, os pequenos candeeiros que iluminavam a divisão tornavam visíveis apenas as paredes de um dos lados da sala. Com esta luz unidireccional, apenas metade da sala irradiava luz e qualquer objecto interposto entre essa mesma fonte de luz e as paredes iluminadas originava sombras desproporcionais ao seu tamanho real. A televisão estava ligada e focava um qualquer programa pseudocultural a quem ninguém prestava real atenção. Ricardo estava sentado no sofá da sala, distraído na sua imaginação, absorvido por mundos paralelos criados pelas suas células cerebrais quando de repente se focou na parede em frente a si. Começou por endireitar a cabeça e verificou que na parede a sombra multiplicava o seu crânio por 4 ou 5 vezes o seu tamanho, de seguida levantou um dedo, uma mão, o braço por inteiro, tudo de forma gradual até que as diferentes partes do seu corpo pudessem fazer lembrar outro qualquer objecto quando em sombra na parede iluminada.

Via-se claramente um pássaro, batia as asas sempre que precisava de subir, abria-as sempre que optava por planar mantendo a altitude, tinha um bico estranho, asas longas e parecia não apresentar qualquer tipo de membros inferiores. Era no entanto capaz de se equilibrar sem qualquer tipo de esforço nos únicos membros de que dispunha e parecia fazer dessa característica imagem de marca. Efectuava voos picados sobre um grupo de pessoas que se encontravam lá em baixo no solo, era também visível que dentro deste grupo de pessoas quase todas estavam armadas com utensílios afiados, espécies de lanças que procuravam espetar no pássaro sempre que este se aproximava o suficiente para os atacar. O pássaro terá tentando algumas vezes o ataque às suas presas, sem no entanto ter tido qualquer tipo de sucesso, até que os humanos ganharam confiança e começaram a adoptar posições dignas de combate, preparando conjuntamente possíveis ciladas à criatura dos céus. Foi quando se preparavam para a derradeira investida sobre a ameaça, que guinchos intensos invadiram o ar, guinchos esganiçados e provocadores de agoniante sofrimento para os ouvidos dos moralizados caçadores, que de forma instantânea largaram por momentos as lanças e levaram as mãos aos ouvidos em atitude de desespero e impulsiva protecção. Como a poluição sonora já o fazia prever, um número incontável de estranhos pássaros juntaram-se então de forma eficaz ao já anterior assassino dos céus. Ao se aperceberam do reforço dos inimigos, os desgraçados e quase surdos humanos iniciaram fuga louca por toda a planície, numa busca desesperada por qualquer espécie de abrigo que teimava em não aparecer. A perseguição foi longa, até que precisamente na altura em que os pássaros conseguiram obter posições vantajosas para que a chacina humana fosse certa, um herói no meio dos fugitivos deu com uma cave secreta nos escombros de uma anterior batalha e em gesto irreflectido de bondade, encaminhou os restantes para o local, salvando centenas de vidas à sua espécie. Permaneceram naquela cave tempo demasiado longo para ser contado, olhando uns pelos outros, juntando esforços para que nenhum inimigo os conseguisse perturbar, mantendo sempre uma vigia nos céus, espreitando por uma fenda oportunamente feita na madeira que lhes servia de tecto, tudo feito em turnos de 2 horas e 2 pessoas, para que nada escapasse aos olhos sedentos de protecção.

Foi num destes turnos, provavelmente no 4º ou no 5º turno, que um dos vigias detectou um outro animal povoando os céus, estranho também como os anteriores assassinos, mas no entanto estranhamente reconfortante para quem o observava, como se viesse acudir a desgraça dos prisioneiros. Efectuava voos de observação do terreno e procurava localizar os humanos, era dado adquirido que o fazia em protecção dos mesmos, essa certeza era facilmente confirmada pela criatura de raça humana que o dirigia, montado em enorme e consistente sela, abanando as rédeas do portentoso animal, gritando nomes para identificação dos prisioneiros. Para surpresa dos escondidos da cave este animal fisicamente assemelhado a um dragão não vinha sozinho em seu auxílio, a ele se juntavam meia dúzia de seres de dimensões idênticas e preparavam-se claramente para o combate, a forma em “v” nos céus denunciava facilmente essa intenção, bem como as armas dispostas no longo pescoço dos animais. O massacre ao inimigo foi então conduzido pelos reforços vindos do céu ao mesmo tempo que da gloriosa cave emanavam gritos de vitória e de consagração de vida. Tudo terá durado ao todo uma dezena de minutos, ao fim dos quais os restantes membros da inicial ameaça já batiam em apavorada retirada, procurando nos destroços do céu um meio de fuga e consequente salvação. Em meio de vitória estavam agora os sobreviventes da cave, que após longas horas abandonavam finalmente as suas posições, e juntavam-se à gloriosa perseguição final, todos lançavam as lanças e os braços no ar em gestos de vingança justificada e alegria incontida, sorriam uns para os outros, abraçavam-se como forma de celebração e esperavam pacientemente acolher a sua voadora salvação. A guerra já estava ganha e os vencedores juntavam agora esforços na salvação dos feridos, quando se vez ouvir em todo o campo de batalha uma voz superior…

-Ricardo!? Quantas vezes tenho que te pedir para pores a mesa? O jantar já está feito!

A superior mãe irrompia desta forma por entre os despojos da batalha. Interrompendo a batalha travada à hora de jantar na parede da sala, mesmo em frente ao sofá onde Ricardo estava sentado. Assim que baixou as mãos, Ricardo olhou uma última vez a parede, os dragões e os humanos tinham desaparecido e o campo de batalha estava agora deserto.

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sábado, novembro 17, 2007

Amores de Liceo ***

É fim da tarde em Barcelona. Vista de cima, a cidade encanta quem a olha. As impressionantes moradas esculpidas por Gaudi reflectem uma cor alaranjada e proporcionadora de ambiente extraordinariamente calmante. De toda a cidade, os prédios são mesmo os constituintes mais apaziguadores, as pessoas, essas, viajam à velocidade da luz, descrevendo nas ruas da cidade trajectórias irregulares e inéditas, pintando linhas numa espécie de quadro vivido de dinâmica caótica. As calçadas e o alcatrão inundam-se de gente apressada no seu iminente regresso a casa, todos parecem cansados e de pensamento centrado no momento em que serão recebidos pela família assim que se encontrarem na sua familiar morada. Os táxis parecem poucos para tanta clientela e os autocarros aguardam rios de gente que espera pacientemente pela sua vez de picar o bilhete, por fim lá o picam e procuram lugares para se sentarem, quando já não os há permanecem de pé, alguns encostam-se nas gentes que partilham o mesmo transporte e que por ocasional delicadeza não se importam de permitir tal confiança. O cansaço desculpa tudo, o cansaço vitima até habituais resmungões que por aquelas tardes se fazem acolhedores, o contrário também acontece e há gente calma e constante que revela agora rosto fechado, impenetrável e por vezes ameaçador. Há carros parados no meio da estrada, toques rodoviários de última hora obrigam a minutos valentes e longos de engarrafamentos, retardando vidas familiares, impedindo que miúdos se divirtam com os pais antes de jantar, destabilizando compromissos e jantares planeados com antecedência.

Observando toda a movimentação, Pedro decide ir de metro para o Hotel, prescindindo da extraordinária beleza citadina enriquecida pela luz tardia do sol, de forma a evitar prolongamentos indesejados em pernas já desesperadas por descanso. A estação está também ela lotada e barulhenta, invadida por murmúrios de línguas estrangeiras à cultura de Pedro e por ocasionais choros de bebés descontentes com a esperada hora de ponta. As línguas enrolam-se e desenrolam-se a uma velocidade desconcertante, as conversas misturam-se confundindo o ambiente e amigos despedem-se aceleradamente uns dos outros, deixando no ar palavras imperceptíveis e na pior das hipóteses simpáticas. Pedro lembra-se da música como trunfo para suavizar a situação, lança a mão no fundo da mala e encontra o tocador de melodias, desenrola-o e leva os auriculares aos ouvidos, carrega “Play” e deixa-se envolver. Aos poucos o ambiente vai entrando na música, vai evidenciando particularidades presentes no ritmo da mesma, deixa-se fazer de cenário para a melodia e ao fim de breves minutos, tudo parece fazer parte do mesmo ambiente. A música deixa de estar descoordenada com os acontecimentos e deixa de servir apenas como calmante do momento, faz agora parte daquela carruagem e tudo parece mover-se segundo os seus acordes, desde o abrir e fechar das portas até ao movimento acelerado das pernas dos passageiros. As estações vão-se seguindo e os olhos de Pedro contemplam centenas de rostos que vão e vêem, vão e vêem os passageiros sem qualquer ordem e aproveitando o ritmo do metro, enchendo espaços e lugares já bem ocupados por outros. O desespero pelo fim da viagem é agora praticamente desprezado pelo português, que ao som das guitarras lembra agora a sua família, lembra os momentos passados anteriormente ao som daquela mesma banda sonora, anseia por os repetir, anseia estar perto dos seus protagonistas, sonha voltar a ter o papel central da acção.

A certa altura e trazidos no ajuntamento de personagens que dá entrada na carruagem, 3 miúdos se destacam à vista de Pedro. Algo neles o faz identificar-se, o faz querer observar e estudar a situação em que se encontram. Centrando a acção neles, consegue distinguir duas raparigas e um rapaz, elas terão mais de uma dúzia de anos, talvez 14, ele é aparentemente mais novo, talvez uma dezena, talvez 11 anos. É também franzino o rapaz, possuidor de rosto malandro e cabelo modernamente penteado, juntado com gel à frente, tem uma t-shirt preta enfeitada com logótipos e frases identificadoras de uma qualquer banda espanhola. Olha de forma deslumbrada uma das duas que o acompanham, observa-a hipnotizante numa saia preta e branca e enfeitada por brincos largos e redondos, ela responde-lhe com sorrisos e com expressões francas de “derretimento” amoroso.

O metro abranda em aproximação à próxima estação. Nas paredes lá fora estão escritos identificadores de “Liceo”. Ele é apanhado meio de surpresa e em atrapalhados gestos despede-se da amiga e da rapariga retentora da sua admiração e sai para a estação. O metropolitano recomeça o seu andamento e ela, vendo o seu admirador afastar-se, corre para a janela e chama apaixonadamente pelo seu nome. Ele apercebe-se e ao olhar para dentro da carruagem encontra o olhar dela e sorri encantadamente, um sorriso de pura inocência e felicidade. A apaixonada cora e a amiga ri-se por ela, tal como toda a carruagem, tal como Pedro que procura uma interpretação para todo aquele momento.

Por fim apercebe-se, por um segundo, no metropolitano de Barcelona, ao fim do dia, o tempo parou e o mundo é perfeito.


*** Conto inteiramente baseado no post de mesmo nome do blog de Pedro Ribeiro (http://osdiasuteis.blogs.sapo.pt/).

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quinta-feira, novembro 15, 2007

Castro, o vingador

O jovem Castro foi sempre cidadão exemplar, digamos que de dentro do conjunto de pessoas que constituíam a população da sua região, foi um dos que mais contribuiu para o bem-estar geral e dos que menos praticou o “mal”. No entanto, e desde o seu nascimento, jurou acabar com a injustiça de que tinha sido alvo e não descansou enquanto não se sentiu vingado.

Começando do inicio… João Manuel Castro foi o nome que lhe foi dado pelos pais aquando do seu nascimento. Nasceu em casa, num tempo em que nascer em hospitais fazia parte de um luxo, apenas ao alcance de muito poucos, aliás, as únicas pessoas que nasciam naquela época em qualquer centro de saúde ou hospital, eram ou constituintes de famílias enriquecidas, ou simplesmente moradores de redondezas desses mesmos estabelecimentos. Sendo assim, em qualquer terra isolada, isto é, terra longe de qualquer cidade principal possuidora de centro de acolhimento apropriado ao nascimento de novos indivíduos, não havia ambulâncias que fizessem quilómetros e quilómetros de estradas secundárias, para que uma criança recém-nascida tivesse acesso ao privilegiado nascimento assistido. Assim, as novas crianças destas terras longínquas, tinham apenas direito a serem assistidas por uma qualquer espécie de enfermeira (na maioria das vezes improvisada) e pelo padre da aldeia (se o marido deixasse), que com algumas preces tentava acalmar ou simplesmente contribuir para o pânico da nova e sofrida mãe. Escusado será dizer, que muitas das vezes este padre ou entrava em pânico por nunca ter visto algo semelhante, ou entrava em pânico porque o sujeito da parição simplesmente soltava palavrões e palavras capazes de ferir membros do clero, por menos susceptíveis que estes pudessem ser. Resultado final, a mulher berrava até à exaustão, enquanto o padre entrava em pânico, interrompendo-o horas depois, altura em que o choro da nova atenção da terra se transformava em puro encantamento. Isto era portanto regra primordial sempre que o pregador de missa assistia pela primeira vez a um nascimento, acabando nas vezes posteriores, por se habituar, ou simplesmente rezar pela mãe e pelo novo filho no exterior da casa, longe de visões e exclamações chocantes.

O nascimento de João não foi excepção à regra, processando-se de forma tradicionalmente semelhante a esta. Tomaram portanto parte neste nobre acontecimento, uma mãe, um João pronto a nascer, uma mulher que segurava a mãe do lado esquerdo, uma mulher que segurava a mãe do lado direito, outra mulher que procurava incentivar a berrante grávida, uma enfermeira formada na capital (tinha de facto tirado todo o curso em Lisboa) que desempenhava todo o principal papel cientifico do acto (sendo olhada de forma estranha por todas as outras, que sendo inexperientes em situação semelhante, ora a admiravam, ora se ruíam de inveja) e a cunhada da protagonista (futura tia de João portanto) que lhe passava um pano húmido pela testa, em tentativa desesperada de a acalmar, ao mesmo tempo que sacrificava a sua mão, exprimida até ser órfã de sangue, tudo em benefício da futura mãe e do seu já estimado futuro sobrinho. Finalmente tomou também parte no acontecimento, o estreante e jovem padre da aldeia, homem caricato e possuidor de testa capaz de servir de pista de aterragem, a aviões de escala reduzida. Este homem, era também conhecido e caracterizado por discurso demasiado lento e extrema calma em situações difíceis e de facto, durante todo o parto, o padre não soltou qualquer palavra reveladora de choque ou surpresa, mas chegada a altura de João abandonar a sua antiga morada, soltou grito ouvido por toda aldeia e aldeias vizinhas (segundo constava nas conversas ditas “fora de fronteiras” ), ao qual se seguiu desmaio fulminante e revelador de fracos rins e emoções. Desta forma, quando João finalmente abandonou o interior da sua mãe, a “plateia” dividiu a atenção entre a sua pessoa e o pobre do padre, estendido no chão.

Talvez por esta razão, João nunca gostou do padre, considerava-o de forma altamente intuitiva, um ladrão de atenções cruciais, considerava-se como que prejudicado pela imprópria divisão de atenções na hora do seu nascimento, sentindo-se lesado e alvo de incompleta atenção. O momento de nascimento deveria portanto ter sido um momento inteiramente dominado por ele e o padre impossibilitara isso, com o seu fraco sentido da natureza de um parto. No entanto e de forma contrariada, João teve educação católica, sempre foi à missa (dada por esse mesmo padre todos os domingos), confessava-se ao padre sempre que corriam boatos que era um desalinhado, enfim, fazia a sua vida católica normal, sem no entanto deixar a sua memória esquecer. O padre devia-lhe pelo menos 30 minutos de atenção por parte da aldeia e ia ter que os pagar.

O jovem Castro montou então durante anos, pormenorizada operação de estudo ao comportamento do padre. De tal forma, que em todos as missas que o padre dava o jovem Castro assistia, estudando as suas palavras, os seus gestos, os seus tiques, tudo aquilo que o poderia caracterizar era criteriosamente investigado por este improvisado e vingativo espião. Mantinha-se sempre alerta, sempre pronto a perceber qual seria a melhor altura de se vingar e lançar golpe inesperado pelo padre ladrão de atenções. Chegou mesmo a ensaiar um golpe na sua cabeça, repetindo-o até à exaustão, chumbando-o e reformulando-o vezes sem conta, até chegar a um perfeito esquema final, posteriormente ensaiado através do sussurrar das falas que o constituíam, tal e qual um actor dramático nas horas que antecipam cada exigente peça teatral.

Esse golpe final, tinha então dois outros intervenientes descobertos pelo atento Castro em visitas do padre a aldeias vizinhas. Desmascarado por manter sempre a mesma rotina, foi assim notado por atender nestas “excursões” a bem mais que as necessidades da igreja, atendia também às necessidades de duas senhoras de meia-idade, que alternadamente numa aldeia e noutra eram atendidas amorosamente pelo ladrão de atenções. O vingador estimou esta preciosa descoberta, e foi então que finalmente arranjou forma de levar as duas a coincidir na missa da sua terra, enviando a cada uma igual e romântico bilhete acompanhado de rosas, nos quais indicava a hora e o lugar de comparência obrigatória para que a paixão fosse continuada, bem como as instruções sobre a altura e a maneira como agir. Restava esperar e ansiar o dia, tal como um militar anseia pelo regresso a casa.

O dia chegou, o último do mês em que se encontravam, escolhido por ser domingo e por normalmente se verificarem as maiores afluências à missa nesse mesmo dia. Escolheu a missa do meio-dia, de forma que as 12 badaladas dos sinos servissem como uma espécie de entrada dramática ao que se iria passar no interior da igreja. Tudo se iniciou então dentro da normalidade, o padre discursou durante toda a missa sem qualquer ideia do que lhe iria acontecer, sem sequer reparar nas duas caras familiares que se encontravam algures pelo meio dos seus atentos ouvintes. A primeira dessas caras estava então a não mais que 10 metros de si do lado esquerdo, em posição central e a segunda do lado oposto, ligeiramente mais afastada, mas também em posição privilegiada e digna de interveniente principal na acção. Acabada a missa e quando toda a gente estava já levantada e a dirigir-se lentamente para a porta, as duas mulheres seguiram até ao altar, chamaram em simultâneo pelo seu amante e ficaram a olhar de frente uma para a outra. Rapidamente e tendo em conta os boatos, se aperceberam do acto de traição de que tinham sido alvo e quando o padre deu sinais de vida e se deparou com as duas ali na sua frente, foi novamente demasiado fraco e não evitou um novo desmaio.

Foi aí então, que a atenção se voltou contra o desmaiado e o vingador Castro assumiu o controlo das operações, explicando a toda aquela admirada assistência de crentes, o porquê de novo desmaio repentino por parte do padre, recuperando assim toda a atenção e todo o tempo, que lhe tinha sido roubada na hora do seu nascimento.

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terça-feira, novembro 13, 2007

Do mundo não, mas da Europa quase.

Foi o dia mais colorido de todos os dias. Foi o final de festa (quase) perfeito. Lembro-me da Inês, uma cara bonita de quem lia as crónicas religiosamente n'"A Bola", cujo único mérito foi ter juntando umas pinturas á cara e ter sido apanhada num sorriso do tamanho do mundo num dos jogos da primeira fase. Lembro-me de achar que a meia-final era cumprir calendário, porque não havia maneira de não levarmos o caneco na Luz, em nossa casa. Num dos actos mais ilógicos da minha existência, a seguir ao golo do Maniche só me preocupei com o Grécia-Rep. Checa do dia a seguir para saber quem ia perder na final.

Sinceramente, e olhando para trás há todo um mundo que separa quem venceu aquele prolongamento no Dragão: a Rep. Checa era a equipa que melhorava jogava futebol naquele torneio e a Grécia o pior. Desde desse golo de Dellas que me tornei mais científico e menos artístico, porque foi a prova cabal que a arte não vale nada. Era quinta-feira à noite e a festa começava.

Enquanto o Primeiro-Ministro em funções na altura se preparava para fazer cair o governo e instaurar a comédia, o país viveu as 72 horas mais belas deste prematuro século. Com as suecas, as dinamarquesas e as holandesas a abandonarem Lisboa em horda, eis que só ficavam-nos nós e os gregos para decidir a contenda, numa cidade muito mais monocolor do que aquela que era antes dos 1/4 de final.

Lembro-me de no sábado ter tomado aquela que ainda hoje considero a pior decisão da minha vida: ao contrário de todos os outros jogos, decidi ir ver a final a um sítio público, ao Parque das Nações com dois amigos com quem tinha acabado há dias o liceu. Ainda hoje acho que a minha mãe não me perdoou ter ficado sozinha para a festa, que afinal acabou por não acontecer. E sim, ainda hoje acredito que se tivesse visto a final do meu sofá da sala teríamos, pelo menos, ido a prolongamento com aqueles sacanas.

No próprio dia acordei muito nervoso e em nada mais consegui pensar: era o Jogo. O jogo e ainda o jogo. Cheguei ao local do crime e vejo lá ao fundo, em cima da Ponte, o autocarro do nosso contentemento. Era bom sinal ver a equipa antes da "coisa". Não havia um único sítio para ver a bola em todo o Parque das Nações e chegamos a encontrar uma (linda) irmã de um dos amigos sentada no meio do chão de um dos bares também preparada para sofrer certamente.

Foi só mesmo no último dos bares, para quem vem da zona das bandeiras que encontramos um sítio com lugar para 3 corpos disponível, tipo metro em hora de ponta. Entramos e recebi uma chamada de alguém que estava no Porto a ver também o jogo. Era a melhor amiga da tipa que me tinha partido o coração uns meses antes. Depois dos salamaleques habituais, um boa sorte para aqui, um boa sorte para ali, e eu estava preparado.

Lembro-me que o ecrã desse bar (que não me lembro o nome porque me recuso a lá entrar ou a lhe olhar para o frontescípio desde então) era uma mistura de ecrãs em cima uns dos outros - formando um só ecrã grande - que davam à transmissão da partida uma dificuldade: de vez em quando a bola ia parar à zona que separava um ecrã do ecrã de cima e perdíamos o fio à meada. Mas pronto, era tarde demais e era a única maneira de ver o jogo, pensei eu.

Lembro-me de cantar o hino com uma força assustadora como se a minha vida dependesse disso. Mas lembro-me do momento de quase-morte que vivi ainda na primeira parte: um remate do Figo - ou teria sido do Maniche? - que, atráves daquela série de ecrãs entrelaçados por riscos pretos deu mesmo a sensação de ter entrado. Nunca tive tão perto de ter um ataque cardíaco. Gritei o mais alto dos berros e explodiu-me literalmente o peito numa dor aguda e certa de termos chegado à vantagem. Só praí 30 segundos depois de todo o bar ter percebido que a bola tinha ido fora é que eu parei de gritar golo quando toda a gente já estava a olhar para mim de lado. Nunca passei tão depressa da alegria extrema à vergonha súbita tipo "onde é que está um buraco no chão para eu me enfiar?".

Na minha imberbe juventude e perante a tristeza anti climática de um 0-0 foco a minha atenção meio no jogo, meio numa rapariga deliberadamente vestida para provocar que estava à nossa frente e que me deve ter servido para descansar a vista após o golo grego (sinceramente entre o golo de Charisteas e o final do jogo não me lembro de nada).

Mas o golo? Como já disse, via-se muito mal o jogo e só se tinha a noção mais ou menos clara que se tinha passado alguma coisa de importante quando se ouvia o relatador o referir. Só me lembro de duas coisas: da desilusão que foi o golo (um amigo ainda disse, ainda não sei se meio a brincar se meio a sério que eu não devia ter ficado tão triste porque "ele já estava habituado a estas coisas - mas como é que alguém se habitua a um sofrimento destes?!? - até hoje me custa falar nisto, caramba...) e de no dia a seguir a capa d'"A Bola" ser hilariante (ainda tenho todos os jornais da época!): a final era remetida para o pé da 1ª página, quando a manchete era o novo treinador do Benfica (que me ia dar, dois bares atrás, uma grande alegria) Giovanni Trapatonni. Mas essa é uma outra história...
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Campeões do Mundo

A cidade acordou em desassossego, por todo o lado se viam carros energéticos, quase todos apitavam, quase todos o faziam numa espécie de celebração e nem os habituais condutores inquietados de transportadoras faziam das suas carrinhas armas de combate a rotundas e cruzamentos (como era hábito matinal dos dias úteis). Em vez disso, lá aderiam também eles com fortes buzinadelas em nome da causa comum. Por todo o lado e desde bem cedo se inundavam as ruas. Qualquer rosto percorrido parecia esgotar de felicidade e entre corredores regulares e gente caseira transformada em transeunte, ninguém parecia afectado por ter de trabalhar ou esperar transportes públicos. Ninguém era representante do habitual equilíbrio entre tristeza e felicidade matinal. Toda a cidade representava assim espaço anormalmente desequilibrado, uma espécie de balança em que o lado da felicidade pesava sempre mais que o lado oposto, por mais pesos que se fossem adicionando em compensação.

Tudo encadeado por causa comum, uma representação desportiva do país que correra francamente bem e que contra todos os prognósticos (a não ser os de gozo), se fazia agora idolatrar por chegar ao jogo final de um campeonato mundial. Feito único e nunca antes vivido por gente tão repentinamente nacionalista. Assim se justificava a disposição geral de uma cidade que era apenas réplica de todas as outras pelo país fora (e de algumas outras estrangeiras mas contudo altamente “nacionais”). Assim se justificavam os sorrisos rasgados, as piadas sobre nações derrotadas, os carros e as casas pintadas pelas cores beijadas e com essas mesmas cores as bandeiras, duas ou três por varanda, mais duas ou três nos vidros das marquises, até algumas mais que chegavam a pintar veículos e a nascerem de tubos de escape fugidos à inspecção. Até os sinais pareciam colaborar, ora verdes, ora encarnados, ora esporadicamente amarelos, tudo em sintonia genuína, sincera e nacional, esperando fazer balançar a equipa para o passo final, fazer de todos campeões do mundo.

Com a chegada da hora do jogo, todas as televisões e rádios parecem ter promoções especiais, oferecem bilhetes, camisolas, qualquer tipo de semblante de cores certas, tudo em troca de hinos cantados antecipadamente ou prognósticos irrealistas de vitórias por 10 a 0. Senhoras de idade e vendedores ambulantes gritam nas ruas o nome apetecido, intercalam-no com camisolas vermelhas a preços também eles irrealistas, dão a conhecer as promoções e as vantagens da compra e logo de seguida novamente, justificam-se em nome da pátria. Foram mesmo colocados em localizações centrais e monumentos simbólicos, relógios gigantes em contagem decrescente, em que cada hora, cada minuto e cada segundo parece deixar quem os olha mais ansioso e mais português.

As portas do estádio da final, abrem-se umas quatro horas antes da final. Felizardos com bilhetes regateados a preço de diamante ocupam as cadeiras de imediato e imaginam na relva verde e bem tratada, os lances mágicos, condicionantes e causadores da explosão nacional. Tudo vai correr bem, nem um adepto dúvida nesse aspecto, nem mesmo os que costumam espreitar em casa os jogos pelo canto do olho, argumentando que não gostam de futebol e que não tem qualquer sentido tudo o que o rodeia e se move por ele e com ele. Casais de namorados fazem também do estádio o seu teatro favorito para o romance, dizem palavras melodiosas uns aos outros e mesmo parecendo não abordar o tema da “bola”, sonham sempre com o momento em que a bola entra na rede, momento esse a ser celebrado com justificado romantismo nunca antes conseguido. Viva Portugal!

Um rapaz compenetrado nas suas memórias tenta-se lembrar de como nasceu a sua paixão pelo futebol. Veio ao futebol com o pai e lembra-se que sempre o fez desde pequeno, tem também a certeza que passará esse hábito ao seu filho, mas nunca se lembra do primeiro momento em que o amor o levou a ir ao estádio apoiar a carne e o osso dos jogadores. Sabe que a paixão pela selecção não é como as dos clubes. Amor à selecção caracteriza-se por um amor comum a toda a gente que fala a mesma língua e se entende pela mesma cultura, não há sotaques, não há guerras entre cidades conterrâneas. Todos sofrem pelo mesmo, todos atingem o grau de loucura exactamente ao mesmo tempo e inundam-se de tristeza pelo mesmo motivo. Em nenhuma outra altura isto é possível, o teatro tenta fazê-lo, o cinema também, a música anda lá perto, mas apenas o futebol o consegue.

O jogo está a momentos de começar, o estádio ferve de emoções, milhares e milhares de desconhecidos quando colocados lado a lado parecem conhecerem-se desde sempre, riem juntos, declamam poesia juntos, cantam o hino com a voz do coração e sentem-no mesmo a palpitar mais forte. 60 mil almas no local arrepiam-se exactamente no mesmo instante que milhões de almas o fazem em casa, à distância da televisão.

O jogo começa e sente-se no ar a certeza. No fim destes 90 minutos, somos todos campeões do mundo.

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segunda-feira, novembro 12, 2007

Cão branco

Ana levantou-se naquele dia de peito aberto para o mundo.

Tinha então no dia anterior, marcado para o dia actual, uma entrevista para um trabalho que perseguia há muito tempo, um sonho de uma vida que agora finalmente tinha hipótese de ser realizado, o concluir de todas as suas aspirações e esforços. Tudo na sua vida tinha sido feito a pensar num determinado objectivo e aquela entrevista, representava “apenas” a última etapa antes da meta, o último passo para o sonho, o último passo para a vida que queria levar até perto do seu fim. Poder-se-ia dizer mesmo, que caso conseguisse aquele trabalho, não precisaria de absolutamente mais nada na vida, seria infinitamente realizada (ou pelo menos julgava que seria), seria eternamente feliz, ficaria vitaliciamente satisfeita consigo própria. Tinha sido feita a marcação através de telefonema rico de esperanças e pobre em trato, trato esse que seria capaz de manter à distância a pessoa mais sociável do mundo. Tinha sido perguntado se realmente se chamava Ana Cardoso, e se tinha submetido uma aplicação para designer da empresa em causa, se estaria ainda interessada nesse lugar, se tinha disponibilidade para uma entrevista com um engenheiro de nome bem-parecido no dia seguinte? Ana respondeu sempre em poucas palavras, da forma mais educada e directa que lhe pareceu possível na altura, balbuciando uma ou outra palavra devido à falta de controlo que tinha em relação à felicidade que se fazia expressar por todos os cantos da sua face e do seu ser. Combinada tinha ficado então a entrevista, para a hora logo antes do almoço, pensando rapidamente que a essa hora não teria nada no seu fraco estômago que se pudesse “entornar” em situações mais urgentes provocadas por eventos positivos ou negativos. Essas 12 horas em ponto, eram também uma forma de assegurar que nunca pareceria demasiado ensonada durante a entrevista (o que poderia acontecer caso esta fosse logo a seguir a uma refeição) e de poder canalizar todos os seus olhos e atenções na pessoa que a interrogava e testava os seus ideais, a hora era assim uma garantia para o não falhanço. Para Ana, a escolha da hora ideal, significava sem qualquer dúvida o passo certo para aquele sonho. Não seria certamente por causa de um simples fuso horário que falharia na sua busca de felicidade quase eterna.

Eram 11 horas e 20 minutos quando Ana chegou ao edifício onde iria ser decidido o seu futuro. Por achar que seria mau indicador chegar muito antes da hora marcada (daria segundo ela a impressão de desespero em relação ao quanto queria o trabalho), esperou bastante tempo no lado de fora do edifício, procurando acalmar os nervos, respirar fundo, canalizar pensamentos positivos e descartas pensamentos inimigos da situação. Passaram-se assim então dezenas de minutos, até que finalmente às 11 horas e 51 minutos (portanto 9 minutos antes da hora marcada) Ana ansiosamente se apresentou à eficaz e pouco conversadora secretária daquele que jurava vir a ser o seu futuro patrão:

-Boa tarde! – Começou Ana.

-Boa tarde! Em que posso ajudá-la? – Respondeu a secretária (devia ter à volta de 30 anos).

- O meu nome é Ana Lopes Cardoso… Venho para uma entrevista para o lugar de Designer… - Descreveu-se Ana de forma resumida e rápida, pensando e tentando deixar uma imagem de eficácia e desembaraço.

- Ah…Sim. Pode sentar-se um pouco ali na sala em frente. – Ordenou a secretária de forma fria.

Ana tremeu e dirigiu-se à cadeira mais central da sala de espera, sempre com movimentos muito pouco bruscos para evitar qualquer destabilização na sua suposta paz interior. Foi nessa altura que ouviu novamente a secretária dirigir-lhe a palavra:

- Veio antes da hora marcada! Ainda vai ter que esperar um pouco. O Engenheiro Grimaut só atende à hora marcada…Pensei que lhe tinham referido isso… - Exclamou de forma desagradável, apoiando as palavras numa cara também mal intencionada, fazendo sinal de reprovação com a cabeça, como se fosse seu objectivo reprovar de imediato a ansiosa futura entrevistada.

Como consequência, Ana sentiu-se invadida por uma sensação de mau estar praticamente incontrolável, os nervos escalavam-lhe a espinha sem qualquer dificuldade e pareciam agora querer entrar no cérebro, provocando lutas violentas entre a força de vontade e o medo de falhar. Jurou no entanto para si mesmo, naquele preciso momento, que não se deixaria vencer tão facilmente, engoliu em seco e esperou pacientemente que aqueles minutos arraçados de horas passassem.

- Pode entrar, o Engenheiro está à sua espera! – Ouviu por fim ecoar na fria sala de espera…

Levantou-se e seguiu a secretária até ao escritório onde a sua prova final teria inicio. Quando viu um homem engravatado e com ar importante, tentou a todo o custo sorrir e esboçar simpatia, estendendo a mão e juntando palavras cordiais de “prazer” e “gosto”.

O que se passou nos cerca de 10 minutos seguintes, seria algo fora dos seus piores sonhos, nunca antes tinha sido tão humilhada, nunca antes tinha ouvido ninguém discursar perante si focando esse mesmo discurso apenas nos pontos negativos de a contratar, apontando como defeitos o seu aspecto, a sua ambição ridícula por um cargo que nunca estaria ao seu alcance, o seu aspecto, a sua formação, a sua religião e por fim o facto de ser mulher, numa empresa que ele como fundador tinha formado a pensar especialmente em homens, juntando por fim às criticas uma irónica oferta de emprego para ocupar a vaga inexistente de secretária da empresa a tempo inteiro. Tudo isto em 10 minutos que terão parecido horas, horas sem conseguir dizer uma única palavra, horas em que sentira que nunca lhe tinha sido dada a oportunidade sequer de se apresentar e provar que valia tudo aquilo que o cargo necessitava. Tinham sido 10 minutos de pura humilhação e incineração de sonhos.

Saiu do escritório sem se lembrar de facto de ter saído, só voltaria a si mesma quando tinha sido já abandonada pelos próprios sonhos no meio da rua. Percorreu então centenas de metros de calçada citadina apenas para que alguma parte do seu corpo continuasse a funcionar, sentia o coração a parar de bater, sentia os neurónios a abandonar o cérebro procurando a salvação em alguma parte menos arruinada da sua anatomia. Procurou acordar da vida como se fosse um sonho, mas nem beliscão nem gesto brusco o permitiram.

Terá chorado, terá desejado morrer, terá perdido toda a esperança, ter-se-á dado por vencida, terá olhado em frente e visto um cão branco olhar para si de frente, centrando os pequenos olhos escuros no centro da sua cara. Terá visto o cão piscar-lhe um olho e sorrir-lhe de seguida. Terá pensado que era impossível um cão piscar um olho, e que quanto a sorrir já teria as suas dúvidas. Terá piscado o olho de volta, vendo o cão abanar a cauda e seguir caminho.
Terá também seguido caminho, terá sorrido apesar de ter as suas dúvidas.

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sábado, novembro 10, 2007

"Se conduzir, não beba!!"

O dia era seguramente monótono, era também seguramente quente, com temperaturas a rondar os 32 ou 33 graus que faziam em circunstâncias de campo aberto e sem qualquer sombra, qualquer pessoa desesperar por um qualquer sistema de rega bem intencionado, capaz de salvar o corpo e refrescar a alma.

Armínio é agricultor de tempos livres, quero dizer com isto que nos tempos livres ou fins-de-semana que passa na sua bela e pequena quinta, Armínio cuida da horta, do pomar e mesmo de alguns terrenos ricos em vinhas e cearas de trigo. É portanto um produtor por conta própria, sem ser por conta própria trabalha e sempre trabalhou desde os seus 24 anos (agora teria à volta de 40) num escritória na zona de Leiria, escritório esse de advogados de segunda, apenas eficazes em processos contra companhias de seguros. Mas isto tudo não interessa muito para esta história, devemo-nos focar portanto na segunda vida de Armínio, aquela que é passada no campo sobre sol intenso e oxigénio em quantidades demasiado elevadas.

O dia era portanto quente e parado. No campo em que Armínio se encontrava e à excepção de uns amigos seus agricultores que por ali andavam a ajudá-lo, não se via ninguém, pelo menos ninguém humano, animais viam-se em fartura e mosquitos então, eram tantos que os homens que tratavam a terra frequentemente entravam em desespero e soltavam-lhes ameaças pelo ar, desesperando nomes que não lembravam sequer a pessoas.

Armínio tinha passado naquele mesmo campo a sua última meia duzia de fins-de-semana, preparava as sementes,os locais a semear, os fertilizantes a usar, agendava as tarefas para os próximos meses, encomendava produtos que apenas usaria na colheita, verificava as enchadas e corrigia os seus ajudantes sobre a forma mais ideal de deixar cair a semente na terra. Fazia tudo isto como se a sua vida dependesse disso, nunca antes ningúem tinha visto nele paixão tão intensa como aquela pelo campo e seus derivados. Claramente adorava aquilo, claramente vivia para aquilo, qualquer pessoa mais ou menos perspicaz percebia isso ao observá-lo por curto par de minutos.

Terão andado em todo aquele aparato de semear futuras colheiras durante a manhã toda, sem nunca terem visto outra viva alma passar por ali, nunca estranharam, afinal de contas era domingo, estava provavelmente toda a gente em almoçaradas nas pequenas explanadas da vila que normalmente enchiam nos dias quentes como aquele. Às tantas, e segundo apontava o sol, às 3 da tarde, ouviram um suave assobio ao longe, assobio esse que se aproximou e se tornou num ranger incomodativo. Finalmente quando estava a uma distância possível de observação cuidada, verificaram ser na realidade o guinchar das rodas de uma carroça que se aproximava. A carroça levava claramente peso a mais, daí aquele som irritante e rompedor de tímpanos, no entanto não ia ninguém em cima da mesma. Era estranho! Uma carroça cheia, com um burro atarracado e castrado a puxá-la e sem ningúem a comandar o burro... Quando o veículo se aproximou mais do grupo de agricultores ocasionais, poderam reparar que levava uma velocidade incrível para veículo e puxador tão rudimentares, seguia de facto muito rápido e a própria “chinfrineira” seria de facto uma espécie de súplica por parte das rodas para que alguém as parasse. A essa velocidade passou a carroça à frente daqueles pares de olhos pasmados, e foi então que finalmente puderam observar bem o burro causador de tal barulho e movimentação. Orelhas muito curtas, muito baixo, com passadas curtas mas muito rápidas que quase levavam as pernas a tropeçarem umas nas outras, o mais incrível no animal era no entanto a forma como andava, não era capaz de seguir uma linha recta, ou seguir uma trajectória delimitada pela estrada, ora estava na ervas, ora arrastava consigo searas de trigo, ora voltava para o meio da estrada seguindo depois na direcção oposta. O burro andava de facto aos zigue-zagues, com um olhar louco e desnorteado, mas sempre muito rápido, como se fugisse de alguma coisa...

Fugia de facto de alguma coisa, puderam constactar de facto isso o advogado e os seus amigos agricultores, assim que o burro se afastou levando consigo a carroça, olharam nessa altura para trás e viram aproximar-se deles um homem muito escuro, provavelmente cigano, seguindo numa correria desenfreada na perseguição da carroça, berrando algo que pensaram ser o nome do animal, suplicando para que parasse, insultando pelo meio o mesmo burro e deitando as mãos à cabeça em gestos de desespero incontrolável. Nunca conseguiria apanhar a carroça, pelo menos àquela velocidade, o burro claramente ampliava a vantagem a cada passo que dava.

Por fim quando nada o fazia prever, o burro escorregou e aterrou de focinho no meio de um campo de arroz que delimitava a estrada, virando a carroça e espalhando na estrada toda a carga que transportava. Nessa altura todos conseguiram observar com mais atenção “o tesouro” com que o burro ambicionava fugir.

Estavam então espalhadas mais de uma dezena de pipas de vinho e pela estrada fora um rasto de vinho escorrido marcava agora a trajectória que o desgraçado do burro devia ter seguido na sua corajosa fuga ao cigano. Na berma da estrada estava também um cartaz de uma campanha rodoviária onde se podia ler :
”Se conduzir, não beba!!”

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