quarta-feira, outubro 24, 2007

20 de Dezembro

Dia 20 de Dezembro e são 10:35, pelas portas abertas em pânico do hospital Santa Maria entra Manuel Saraiva em maca. Manuel apresenta ferimentos provocados por chamas, queimado por uma fábrica de equipamentos pirotécnicos que decidiu fechar-se a si própria provocando intenso fogo de artifício assassino como forma de comemoração.
Manuel não sente já o corpo, apenas sente a dor, apenas sente o ardor provocado pela pele carburada que quando exposta à luz parece capaz de o fazer desmaiar em agonia.
Passa-lhe pela cabeça que irá morrer no meio daquelas paredes brancas, sentindo o cheiro a enfermaria, passa-lhe pela cabeça que dava tudo para morrer noutro local. Gostava mesmo muito de poder ver os filhos à sua volta quando isso acontecesse.
É chamado às urgências o doutor Guilherme Amaral e passada uma hora Manuel já se conformou. Ainda bem que não vai morrer rodeado por aquelas paredes brancas e pelo cheiro a medicamentos.

Sente-se ardido, mas sente-se salvo.


Dia 20 de Dezembro e são 12:40, pelas portas abertas em desespero do hospital Santa Maria entra Maria Fontinha em maca. Maria caiu em casa quando se preparava para aliviar a prateleira mais inacessível da dispensa, de um aparelho de meia duzia de quilos. Era baixa, à volta do metro e meio, chamou o filho para lhe chegar ao aparelho, o filho não veio e ela cansou-se de esperar, puxou um banco e cresceu em cima dele, quando avistou a geringonça esticou o braço e não terá esperado tanto peso. Desequilibrou-se e ao tentar segurar-se na prateleira revirou a dispensa aterrando violentamente, seguiu-se uma chuva de objectos demasiado pesados.
Maria tem muitas dores, não se lembra de ter alguma vez tido dores parecidas e tão intensas. Olha-se e apercebe-se que os braços não estão no sentido correcto. Começa a desesperar e passa-lhe pela cabeça que nunca mais poderá pintar, que não poderá continuar a sua razão maior de vida, que nunca pintará quadro digno de admiração alheia, que nunca poderá ter a sua exposição e explicar os significados ocultos de cada quadro pintado a meias pela imaginação e pelas mãos.
Apercebe-se então pelo que diz o paramédico ao médico Gilherme Amaral que terá fracturado os dois braços, uma perna e duas costelas. Passa hora e meia e Maria já se conformou. Ainda bem que os braços voltaram ao sítio e que poderá retractar emoções em tela.

Sente-se uma múmia pendurada, sente muito calor, quase que desespera com a situação, mas sente-se salva.


Dia 20 de Dezembro e são 15:54, pelas portas abertas em desassossego do hospital Santa Maria entram André, Manuel, Isidra e Alberto Carvalho, todos em maca. Família inteira que ia para casa da Avó no interior do Alentejo. Tinham partido bem cedinho de Guimarães, eram 7 horas da manhã estavam já André e Manuel, os filhos, à bulha no banco de trás, Isidra a tentar parar a confusão e Alberto a aviar o carro das últimas bagagens que pareciam intermináveis. Alberto entrou no carro e de imediato os “miúdos” pararam com a confusão com medo de uma reprimenda mais destabilizadora que a dada pela mãe. Apanharam a autoestrada de forma a demorarem o menor tempo possível, vieram sempre a 140 de modo a demorarem o menor tempo possível, Alberto ultrapassava outros carros sempre que podia, tudo de forma a demorarem o menor tempo possível. Alberto não gostava de conduzir, nunca gostou, mas conduzia sempre rápido, não gostava que as viagens demorassem muito tempo.
Por desgraça, nunca foram apanhados pelas brigadas de trânsito e acabaram por embater fortemente num menos dotado condutor que tentava evitar que os veículos que o seguiam o deixassem para trás. Alberto antecipou o embate e soltou grito de precaução para a restante família, grito para se protegerem e para os filhos estarem quietos no banco de trás. Todos tinham cinto, mas todos ficaram inconscientes com excepção do mais novo, rapaz herói e capaz de ligar para as emergências do telemóvel do pai, antes de inundar a cara de lágrimas ao ver a familia aparentemente imóvel.
O mais novo, chamado André e entrado no hospital também estendido apenas por precaução, só queria que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Passou-lhe pela inocente cabeça que nunca mais bulharia com o mano no banco de trás, que nunca mais ouviria as reprimendas pesadas do pai, que nunca mais abraçaria a mãe, que nunca mais veria mover-se nenhum dos três partilhantes do carro de grandes velocidades.
Vários médicos vieram ao encontro das macas, Guilherme Amaral era um deles, levou para a sala de operações o senhor Alberto que apresentava graves lacerações na cabeça.
Três horas depois o pequeno André já se conformou. Vai poder voltar às bulhas, ser fortemente reprimido e abraçado, mas espera não voltar a fazer viagens velocistas.

Sente-se assustado, mas sente-se salvo.

Dia 20 de Dezembro e são 19, 20, 21 horas e alguns minutos. Pela porta do hospital Santa Maria entra gente ferida, em maca ou pelo próprio pé. Pessoas acidentadas em pequenas ou graves situações, ou em casa, ou na rua, ou na estrada. Passam pela cabeça de todos as piores esperanças, mas nesse dia nenhuma se verifica. O doutor Guilherme Amaral está de serviço, é chamado todas as vezes que se encontra disponível.

Passado longa hora ou curtos minutos, todos eles se sentem salvos.

É agora dia 20 de Dezembro e são 23:43, pela porta de um qualquer apartamento citadino entra Guilherme Amaral assustado. Passa-lhe pela cabeça que o mundo não está minimamente ao alcance de ninguém, sente-se incapaz de explicar porque salvou tanta gente num dia. Passa-lhe pela cabeça que no dia seguinte será incapaz de salvar qualquer pessoa que entre pelas portas abertas em urgência do Santa Maria.
Passados breves segundos, Guilherme já se sente conformado. Com a mulher nos braços sente-se capaz de fazer tudo, sente-se capaz de salvar qualquer pessoa.

Sente-se recompensado e sente-se salvo.

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1 Comments:

Blogger Mariana said...

já me actualizei! estão todos óptimos, mas este chamou-me particularmente a atenção por causa desse último "sentir-se salvo". interpreto-o como uma diferente salvação em relação aos outros... uma salvação de alma, não de corpo. Gostei - a lot! =)

4:41 da tarde  

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