segunda-feira, junho 11, 2007

Rui

Imaginem a própria vida contada como uma história.
Imaginem uma pessoa sem pais, sem filhos, apenas um homem de 45 anos que vive numa pequena moradia de 2 quartos e 2 andares. Imaginem o seu dia a dia...
Empregado de uma pequena roullote/restaurante serve todos os dias habituais clientes entediados, os já rotineiros croissants mistos e torradas semi-queimadas passam por ele como se fosse apenas um veículo de transporte entre a torradeira e a goela do comedor. A rotina, essa grande arma de terror usada sem descanso contra o povo rezingão, faz dele utensílio da vida, um utensílio usado apenas pelo patrão impiedoso que exige sempre mais uma mesa limpa no seu mero “comedouro” de 20 metros quadrados.

Imaginem que se chama Rui, que é alto e muito magro, que tem olhos castanhos e que nunca passou uma escova pelo cabelo. Imaginem a pessoa com o ar mais banal possível.
Este homem banal, levanta-se todos os dias às 7 da manhã e em 30 lentos minutos (os mais lentos que consigam imaginar) lava-se, veste-se, fecha a porta à chave e atravessa a rua sem olhar para qualquer um dos lados, entrando no seu emprego sem mostrar uma única expressão no rosto.
Patrão que o vê entrar, não se apercebe de tristeza ou felicidade, não sabe se ele gosta ou não do que faz, o patrão que o vê entrar, também não se preocupa minimamente com ele, sabe apenas que se ao fim do mês lhe pagar os habituais 90 contos (que após breve conta converte em euros), ele voltará no mês seguinte, e que nunca, mas nunca, se irá queixar ou pedir aumento.
Após 12 horas de servir “francesinhas lisboetas” e vinho carrascão intitulado “da casa”, Rui embala os restos do “prato do dia” e sai pela porta de trás exactamente com a mesma indiferença que entrou pela da frente, atravessa à rua sem olhar para qualquer um dos lados e chega à porta de casa exactamente às 19 e 45 (hora em que ainda é dia no Verão e já é noite no Inverno), alcança as chaves no fundo do último bolso do casaco e num gesto seco mas ansioso destranca a porta e entra em casa, sem que antes passando rapidamente os olhos no tapete da entrada leia “Bem-vindo trabalhador incansável de volta ao teu Reino”.

Imaginem que depois de 30 anos desta habitual e indiscritível forma de vida, o Rui é despedido...A razão? Uma ao calhas escolhida pelo patrão, a de que ele “Não mostra qualquer simpatia sempre que leva o copinho de branco ao senhor Júlio” ou ainda a de que ele “leva sempre o pão mais rijo à mulher do Senhor Júlio”.

Imaginem agora que são o Rui, e que aquele tapete de entrada é tudo aquilo que os move na vida... Será que agora aquele mensagem ainda tem algum valor? Não será verdade que a sua vida acabou ali?

Agora respondam para vocês mesmos à pergunta colocada acima desta linha...
Eu? Tenho a minha resposta...Só vos dou uma pista...

No outro dia, vi o Rui ali para os lados do Campo Grande sentado num banco de jardim olhando fixamente a água e os efeitos causados pelo “deslizar” dos patos e quando o olhei fixamente na cara estranhei...
Ria-se como se tivesse acabado de ver um pato pela primeira vez na sua vida.
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