domingo, agosto 05, 2007

No 759

Entro no autocarro e sou invadido por uma sensação estranha, Lisboa é tão bonita às 6 da manhã com uma luz paranormal, parece tirada de um filme, tudo parece fazer sentido e tudo parece parado e mágico, posso olhar para qualquer lado e pensar em qualquer coisa que àquela hora tudo tem um “sabor” especial.
Subo para o 759 no Oriente e procuro um lugar que me leve a casa, a meio do percurso entra no autocarro um homem meio negro meio branco, cor a que normalmente chamamos mulata, histéricamente passa o “pica bilhetes” e vai-se sentar no último lugar de um autocarro já por si praticamente vazio.
Senta-se, funga e berra, funga e berra o tempo todo, berra algo indecifrável e pelo meio grita nomes e palavrões que parecem ser dirigidos ao seu passado.
Nisto, estamos a meio do curso do autocarro a mais ao menos 3,4 paragens daquela em que saio, quando entram a bordo uma mulher idosa acompanhada do seu parceiro de longa data, os dois teriam juntos à volta de 170 anos, ele parecia mais velho que ela.
- Animal!!! – ouve-se lá do fundo do autocarro
- Animal!!! Cab***!!! Vens para cá e para lá e não dizes nada!!! Cabr***!!! – repete ainda mais irritado o mulato envelhecido.

Com isto parece estar o velhote meio incomodado mostrando no entanto um ar de habituação pouco normal em relação àquele extremismo linguístico.
- É o Júlio!! – diz o velho para a sua companheira de longa data
-Lembras-te de te falar do Júlio?
- Hum!!! Aquele que teve aquela coisa na cabeça? – pergunta a velhota.
- Esse mesmo!! Já não o via há um tempo valente…Será que ainda se lembra de mim? Será que me está a reconhecer? – Seguiu para o fim do autocarro e iniciou conversa com o homem enquanto a sua mulher se sentava nos lugares especialmente reservados à terceira idade.
O velho ficou uns 2 minutos no fim do autocarro e durante todo esse tempo por várias vezes o mulato insultou aos gritos o velhote que parecia reagir de forma estranhamente normal, como se estivesse a ter com ele uma conversa normal…

Acena-lhe em forma de despedida e a resposta é novamente um insulto. Retorna ao seu lugar e senta-se ao lado da sua companheira de longa data.

A reconhecer??? Pensei eu, então o homem chama-lhe nomes assim que o senhor entra no autocarro e ele acha que ele o está a reconhecer? Ele não o está a reconhecer, ele está a insultá-lo com todas as suas forças… Mas que raio…
Adivinhando este pensamento o velho regressado à parte da frente do autocarro olha para mim de forma desconfiada mas esclarecida e afirma:

- Ele não é maluco!! Ele é vivido!! Não pense que ele é maluco… O Júlio foi meu colega na gerra colonial, era um rapaz como deve ser. Só que veio de lá meio trocado, sabe que isto da guerra mata muito gente…Só que a maioria dos mortos são aqueles que continuaram vivos. – E nisto continuou como se eu tivesse de facto perguntado alguma coisa…
- Ele reconheceu-me quando eu entrei no autocarro, o insulto, o nome que me chamou foi reconhecimento…Ele não é maluco, ele é bom rapaz… Tal como eu, ele sobreviveu àquele tempo, mas eu tive sorte, quando voltei tinha esta senhora à minha espera…- E indicou com os olhos a sua companheira…
- Ele voltou para o nada… A mulher foi traidora da sua pátria e abandonou o soldado quando ele estava em guerra…Ele voltou para o nada, consegue imaginar o que é isso?–
Concordei que desconhecia o sentimento mas que o imaginava arrasador e esgueirei o olhar para a parte de trás do autocarro para procurar o Júlio, estava sentado junto à janela do lado esquerdo e olhava para a cidade… Mas não olhava para uma luz mágica em que tudo é bonito…Olhava para uma luz cinzenta e preta em que tudo era injusto e perdido no tempo… Tive a certeza que de naquele autocarro iam dois espíritos opostos… O meu que achava Lisboa encantadora às 7 da manhã e o do Júlio que achava Lisboa àquela hora um pesadelo sem fim... Os dois apanhámos o mesmo autocarro, só que os dois tínhamos intenções, memórias e destinos contrários.

Eu saí na paragem por trás da igreja e ele insultou-me, deve ter sido o insulto mais merecido da minha vida.
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