quinta-feira, outubro 04, 2007

A bela vizinha

Luís saiu à rua como fazia todos os dias. O rosto acabado de lavar agregava ainda pequenas e escorridas particulas de àgua e a sensação causada pelo vento na cara refrescava-o em todas as medidas. Este era já um hábito rotundo de Luís, era também a única forma possível de acordar do lado certo da vida, era aquilo que fazia a diferença entre desejar bom dia à primeira pessoa com quem se cruzasse na rua ou simplesmente ignorá-la com cara de poucos amigos, e não, não existia mesmo um meio termo.

O dia era frio, olhou para o termómetro do centro da rotunda perto de casa e apercebeu-se que a temperatura tinha descido mais do que estava à espera, era a tal frente fria que vinha dos países nórdicos, só por isso se justificavam os 4 graus matinais que provocavam na fila da paragem do autocarro uma tremideira contagiante, desde o primeiro homem, mais velho e de barbas brancas (que pouco o deviam aquecer) até à empregada das limpezas que estava à sua frente e que abanava de forma eléctrica e em gestos súbitos o saco de detergentes que transportava.

Luís estava muito bem disposto como era já hábito nos últimos dias, estava muito provavelmente assim desde que tinha travado conhecimento com a bela vizinha que se tinha acabado de mudar para o 3º esquerdo do seu prédio, para Luís era claramente uma lufada de ar fresco aquela cara contagiante no seu prédio repleto de rostos de terceira idade. Uma coisa era verdade, nunca tinha tido problemas com aquela gente, eram tudo ex amigos de guerra do seu pai, que depois de regressarem da guerra tinham conseguido comprar aqueles apartamentos por baixos preços numa espécie de recompensa tardia pelo serviço prestado.

Lembrava-se perfeitamente de durante toda a sua infância ter ouvido o seu pai e todos os outros condóminos assobiarem uma música hit dos anos 60, era sempre a mesma “Love Me Do”. Era como que um ritual, todos os dias à mesma hora, ouvia-se o prédio assobiar aquela música, quer estivesse dentro de casa ou a passar por um outro andar, lá estava a música em ritmo crescente, sempre durante períodos curtos de tempo. Perguntou uma vez ao seu pai a razão, respondeu-lhe que era uma espécie de marca por estarem vivos, uma forma de verificar que ainda se mantinham no mundo, tinham começado com aquilo na tropa não iriam acabar ali, apenas quando um deles morresse a música morreria com ele e mais ninguém a cantaria ou assobiaria naquele prédio, deixaria de fazer qualquer sentido.

O pai de Luís era já falecido, naturalmente morrera de velhice, Luís fazia já 33 anos em Outubro e o seu pai só o tivera depois da guerra, quando se aproximava dos 40.

Voltando à nova vizinha, Laura era o seu nome, tinha acabado de trocar uma velha habitação nos arredores de Setúbal por aquele apartamento não mais recente mas em muito melhor estado e com muito maiores áreas, comprara-o a outro descendente de ex combatente falecido (restavam muito poucos no prédio em comparação com 10 anos atrás).

Luís conheceu-a em um daqueles episódios típicos em que uma pessoa vai a sair do elevado e outra a entrar, desastrado como normalmente era tropeçou no degrau entre a porta e o interior do elevador provocando altos e sérios risos da nova inquilina que lhe sorriu e estendeu a mão para o ajudar a levantar, Luís terá gaguejado nesta primeira vez um “b-b-b-bom d-d-dia”, tal como nas 2 ou 3 vezes seguintes, até que uma das vezes conseguiu finalmente dizê-lo numa sequência encantadora de construção de palavras à qual Laura respondeu com um “agora sim, é bom dia”.

“Fascinante” pensou ele vem voz alta, ao que se lhe seguiu um fechar da porta do elevador entre sorrisos honestos e arrepiantes.

Após número indeterminado de encontros no hall de entrada, Luís tinha-se finalmente decidido, jurou para si mesmo ali naquela paragem de autocarro que nesse dia quando chegasse a casa e ao cruzar-se com a vizinha fascinante (normalmente chegava à mesma hora...e se fosse preciso Luis esperava breves momentos para se cruzar com ela) iria convidá-la para sua casa, para beber um cafézinho ou se ela quisesse oferecer-lhe mesmo quem sabe uma bela tosta mista caseira como só ele sabia fazer.


Prometido e feito.

Eram à volta das 20 horas quando chegou a casa, o céu marcado ainda pelo horário de verão reflectia inúmeras cores que apenas poucos sabiam admirar, entre azuis, roxos e amarelos, todos cabiam naquela moldura invadida cada vez mais pela lua e menos pelo sol. Era sem qualquer dúvida o cenário perfeito para aquela proposta e trasmitia a Luís a segurança própria da maioria daqueles pedidos feitos em filmes épicos de hollywood.

Nem teve que esperar...Chegava perto da porta do prédio quando viu ao fundo Laura em passo relaxado, lembrou-se de deixar cair as chaves para ter que se baixar e perder algum tempo. A vizinha chegada então à entrada e sorrindo mal o viu fez questão de se baixar para o ajudar a recolher as chaves entretanto estratégicamente espalhadas, recolheram-nas e em olhares trocados constantemente entraram no prédio. Foi então que aproveitando toda aquela construção perfeita Luis fluiu um pedido impróprio para a sua boca:

-Quer tomar um café e quem sabe comer uma tosta mista? Ali em cima...em minha casa?
Laura espantada com tal pedido e de forma quase imediata respondeu:
-A tosta mista convenceu-me!
E os dois disfizeram-se em sorrisos e gargalhadas meio engasgadas, intencionais e sentidas.

Subiram os dois no elevador, entraram em casa e quando Luís se preparava para pedir o casaco à nova inquilina para proceder à sua arrumação, esta virou-se e rapidamente agarrando-o pela camisa beijou-o em gesto desajeitadamente perfeito.

Foi então que Luís se lembra ter ouvido, vindo de todos os cantos do prédio e durante aquele tremendo acto de felicidade uma música assobiada de forma breve e colectiva...


Não ouvia aquela música desde que o pai tinha morrido...

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1 Comments:

Blogger Mariana said...

belissimos pormenores, não é?

beijinhos po priminho*

8:18 da tarde  

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