quinta-feira, novembro 09, 2006

A rua do Faísca

“Padre acusado de violação numa igreja em Santarem” era a notícia que saía da televisão deixada ligada na sala enquanto Jorge preparava qualquer coisa para a sua seia. Ao ouvir falar em igreja da Graça correu para a sala, mal podia acreditar, ia todos os fins-de-semana aquela igreja e a sua fé inacabável em Deus não lhe permitia aceitar aquela notícia como um facto.

Jorge Amado trabalhava como funcionário público para a camara de lisboa, era aquilo que normalmente o típico cidadão gosta de denorminar por “limpa-ruas”, nunca tinha tido muito na sua vida, nunca conhecera nem o pai nem a mãe, tinha sido educado num orfanato mal-amado nos subúrbios da cidade. Foi assim ensinado por uma mulher católica até ao coração que lhe passou a veneração a Deus como se algo de genético se tratasse.

Nunca venerou mais ninguém nem acreditou em mais nada... Fazia a sua vida diária sem sequer se questionar sobre que tipo de trabalho era aquele que exercia, desde que tivesse o seu canto, a sua vassoura e a sua igreja era feliz.

Tinha apenas um amigo, uma espécie de mascote de uma das ruas que diariamente percorria com a vassoura, de seu nome Faísca era um daqueles caninos que não se destingue bem a cabeça do rabo e que caso andasse ao contrário ganharíamos outro conceito em relação a fazer festas a cães. Talvez o seu nome real não fosse esse e Jorge também não queria saber, a única coisa que procurava no cão era aquilo que Faísca lhe proporcionava todos os dias. Perseguia-o pela rua praticamente de uma ponta à outra até chegar aquele preciso ponto onde normalmente era recompensado com os restos do jantar do dia anterior. Comia, lambia-se e seguia a sua vida ao mesmo tempo que Jorge dava por terminado o turno.
Era uma espécie de ritual, era aquilo que o enchia de vontade e lhe marcava o ritmo de vida.

Jorge tinha como hábito comprar todas as semanas um bilhete de uma qualquer habitual “raspadinha dos milhões”, nunca com o objectivo de ganhar dinheiro mas sim como rotina, aquilo tal com o cão faziam parte do seu dia a dia. Não esperava portanto que um dos seus cartões fosse o premiado, e por isso, nem pensou duas vezes, o dinheiro ia todo para o orfanato.
250 mil euros ou uma “raspadinha de natal” mais tarde, o orfanato deixou de ser orfanato para se passar a chamar “Centro de educação juvenil”. Jorge manteve o mesmo nome, o mesmo trabalho e a mesma vida.

Comparecia todos os fins-de-semana na mesma igreja, recitava todas as orações como se a vida dele dependesse disso e não era raro vê-lo perto do padre pedindo para recitar uma ou outra leitura a meio da missa. Sempre que o padre acedia a esse desejo era visível que nada o fazia mais feliz que “devorar” aquelas linhas.

Ali estava ele, parado no meio da sala. Mirava a televisão como se fosse algo estranho e de outro mundo, aquele aparelho metia-lhe agora nojo e durante uns valentes minutos Jorge pareceu querer fazer-lhe frente transformando um simples aparelho em algo maquiavélico que punha em causa toda a sua vida.
Carregou no botão incisivamente e deixou escapar um som de raiva. Ao noticiário seguiu-se um ecrã preto, estava desligada e jurava por Deus que nunca mais a ligava.
Deitou-se mas não dormiu, e no dia seguinte, saiu para o trabalho sem a vontade e o objectivo do costume...

Chegado á “rua do Faísca” estranhou, olhou, correu, espreitou por todos os cantos perguntou em todas as lojas, mas a única certeza que encontrou foi que tal como Faísca, Jorge Amado não seria mais parte deste mundo, porque o seu mundo se tinha virado contra ele.

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