terça-feira, novembro 07, 2006

Há vidas de azar

"Há vidas de azar", esta podia ser a expressão mais adequada para descrever a vida de António Lopes.

António nasceu em Lisboa filho de transmontanos pouco abastados, os seus pais foram para a cidade na esperança de conseguirem sobreviver na grande capital do país, a sua vida no campo não corria mais de feição e depois de anos e anos a viverem de tudo aquilo que a terra lhes dava, não tiveram outra alternativa senão tentarem educar o seu filho na cidade.

António nasceu prematuro, apenas de 7 meses e muitos médicos duvidaram inicialmente da sua capacidade de sobrevivência numa incubadora. António não só sobreviveu sem quaisquer lesões, como uns anos mais tarde se tornaria num "puto vivaço".
Era exactamente desta forma que era descrito no bairro onde vivia.

Desde novo escapava-se de casa sem a mãe saber e percorria as ruas do bairro de uma ponta à outra. Era um atleta nato, as suas pernas eram mais longas que o normal e corria mais que a maioria na sua idade, era também possuidor de um fôlego inesgotável o que fazia dele uma autêntica amostra de maratonista.

Tudo corria bem até aos seus 9 anos. Neste ano, tanto a sua mãe como o seu pai ganhavam o suficiente para educar o filho e levar uma boa vida de família. Depressa deixaram de ser uma família pobre para se transformarem num normalmente designado "agregado familiar de média classe", a partir deste momento para a frente a vida de António nunca mais seria a mesma…

Foi no dia 22 de Dezembro deste ano que António numa das suas habituais correrias pelas redondezas, mais ou menos quando passava em frente à Igreja não viu uma das pedras de calçada soltas no passeio e passando um pé por cima da pedra escorregou e foi parar ao meio da estrada...Um carro seguiu-se à pedra e António foi projectado uma dezena de metros no sentido contrário fracturando vários ossos na sua perna direita.

Quando somos miúdos, estas situações acontecem de uma forma normalmente regular a qualquer um, mas o que não nos aconteceu à maior parte de nós aconteceu a António Lopes. "Fracturou ossos a mais…Será difícil voltar a correr na sua vida…Mesmo a andar sentirá algumas dificuldades" foram as palavras do médico a uma mãe e pai desesperados. Curiosamente quem pareceu não ter ficado muito afectado com a notícia foi António, reagiu como se nada fosse com ele e mesmo o facto de ter de andar numa cadeira de rodas durante 6 meses após dupla operação, não o afectou minimamente. Em vez de percorrer o bairro em corrida, percorria-o acelerando no seu novo “veículo” imaginando que estava numa qualquer corrida de automóveis da qual saía sempre vencedor.

Passaram-se assim os 6 meses, passaram-se assim os vários meses de fisioterapia, e quando finalmente teve de deixar a cadeira de rodas, António sentia de facto pena de ter de abandonar o seu "Ferrari" para voltar a mover-se usando as suas pernas.
Percorrer todo o ensino básico como o "coxo do bairro" seria mau para qualquer criança excepto para António, parecia tirar gozo dos nomes que os colegas lhe chamavam, chegando mesmo a transformar esse "reconhecimento" em fama. António, era assim o mais conhecido de toda a escola, tinha as notas mais altas e nunca lhe faltaram amigos.

No entanto, e tal como parecia acontecer sempre, com António nunca nada parecia estar bem durante muito tempo, António perdeu o pai vítima de cancro 4 anos depois do seu incidente, tinha então nessa altura 13 anos. Estava a chegar da escola quando soube a notícia, a sua mãe recebeu-o a porta em lágrimas, António por seu lado não mostrou nem uma, e até a morte fulminante do seu pai não derramaria uma única lágrima...A razão? Dissera-a a sua mãe nesse mesmo dia: "Não vamos chorar, vamos lhe dar um resto de um vida de alegria, quando partir choramos, agora ainda não que ele ainda cá está". E nunca chorou até esse dia.

O seu pai morreu no seu dia de anos, tinha 46 anos e chamava-se Luís Lopes. "Parabéns filho, os rapazes transformam-se em homens aos 14 anos...Agora és um homem" foram as últimas palavras que António ouviu da sua boca, Luís morreu nessa noite, exactamente 10 horas depois de dar ao seu filho a última lição de vida.

Nessa noite, António chorou pela primeira vez pelo seu pai e foi a última vez na vida que chorou.

Passaram-se alguns anos e António cuidou da sua mãe durante todo esse tempo, as palavras de seu pai tinham sido para si ordens e a partir daquele dia até ao fim dos seus dias foi homem e não miúdo. Chegou e passou o secundário e António conseguiu sempre grandes notas, por onde quer que passasse toda a gente gostava dele, descrito como um rapaz sorridente fazia amigos de forma quase espontânea, e foi com naturalidade que acabado o 12ºano entrou num curso de letras de uma faculdade em Lisboa.

Nessa faculdade conheceu Ana Lúcia e de imediato se fascinou por ela, era tudo o que sempre quis e por isso mesmo, desde o primeiro minuto em que a viu, António teve a certeza que seria ela a sua companhia para o resto da vida... Namoraram, formaram-se e casaram-se num abrir e fechar de olhos...No abrir de olhos de António e no fechar de olhos da sua mãe, que morreu feliz na presença do seu filho num hospital em Lisboa tinha ela 57 anos. "Chamava-se Maria Cristina e morreu de felicidade." disse António no seu funeral, e não tinha dúvidas, a sua mãe partira deste mundo feliz, feliz pelo filho que tinha, feliz pela vida que tinha levado e feliz pelo marido com quem tinha partilhado a vida e com que se tinha ido certamente reencontrar.

Era esta a forma de António pensar, sempre tinha sido e sempre iria ser. António nunca na vida se tinha interrogado se era feliz porque tinha a certeza que no futuro o iria ser, nunca se perguntou se tinha azar porque sabia que tinha sorte em estar vivo e nunca se perguntou se viveria muito tempo porque sabia a forma como tinha que viver.
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